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19 de novembro de 1997. Durante a “Semana da Consciência Negra”, na PUC do Rio de Janeiro, um jornalzinho feito por universitários intitulado O Indivíduo começou a ser distribuído pelo câmpus. Nele, havia um artigo crítico ao tal evento, em que se afirmou: “O grande racismo, nada sutil, mas que pouca gente percebe, está em eventos como esta Semana de Consciência Negra. Primeiro, porque ninguém acharia bonito se fizéssemos uma Semana da Consciência Branca. Promover uma raça, qualquer que seja, é racismo”.

Duas horas depois de o jornal começar a ser distribuído, uma turba furiosa de mais de 50 pessoas cercou os quatro jovens responsáveis pelo jornal – Alvaro Velloso de Carvalho, Sérgio Coutinho de Biasi, Pedro Sette Câmara e José Roberto de Barros –, acusando-os de serem nazistas e racistas. Não admitiam a liberdade de alguém expressar sua opinião contrária à realização do evento, fundamentando-a com o mesmo valor defendido por eles próprios: ser contra o racismo, como a leitura do artigo prova a qualquer sujeito alfabetizado que o leia.

Não fosse a presença de seguranças da universidade, os jovens teriam sido agredidos. Mas o embate estava apenas começando. Foram levados a um representante da vice-reitoria comunitária. E aqui deixo um trecho do relato de um deles, Alvaro Velloso de Carvalho, do que se passou: “Ele fez uma leitura dinâmica do jornal, supervisionada por dois representantes da Cambralha, circulou com pilot fluorescente o editorial, os artigos do Pedro e o artigo do José Roberto. Na capa do jornal escreveu: ‘Recomendo Apreensão’”. E assim foi feito.

Foi o que bastou para que a turba, que cada vez mais aumentava em número, se sentisse autorizada a fazer “justiçamento”. Segue o Alvaro: “Num determinado momento, um sujeito cuspiu no rosto do Sérgio. Um pouco mais tarde, duas meninas cuspiram no rosto do Pedro, além de outra pessoa lhe ter acertado um soco no rosto, quando ele estava entrando no táxi para sair da PUC”. Os seguranças é que conseguiram fazê-los sair, alegando que duvidavam da capacidade deles de manter a integridade física dos rapazes intacta, em função do grande número de furibundos.

Dois dias depois o fato ganhou os jornais. O Jornal do Brasil publicou uma matéria ouvindo o reitor da época, que disse: “O jornal mostra um individualismo absoluto e um desprezo pelo coletivo, a começar pelo nome. As posições são reflexo do individualismo de hoje, onde o ser humano perde o sentido de solidariedade”. Para completar, o vice-reitor disse que a melhor resposta ao jornal foi “o próprio repúdio dos colegas”. Sim, você leu direito: reitor e vice-reitor defenderam a turba, a censura, as agressões e condenaram os responsáveis pelo jornalzinho. Fizeram pior: um dia depois, enviaram uma carta distribuída via correio a toda a comunidade universitária anunciando que seriam adotadas sanções contra os responsáveis pelo jornal.

O combate se deslocou para a imprensa a partir dali, com intelectuais defendendo e atacando os jovens (os que atacaram foram em maior número), até que o maior jornal do país resolveu noticiar o que acontecia: o Jornal Nacional, da Rede Globo. E noticiou no melhor estilo fake news de hoje em dia, recortando uma frase do artigo citado – “Querer falar de uma consciência negra como se ela fosse essencialmente diferente de uma consciência branca, ou árabe, é realmente estúpido” – para inverter seu sentido, mostrando-a assim ao telespectador: “Querer falar de uma consciência negra é realmente estúpido”. Foi de uma malícia ímpar, mas que já não surpreendia à época.

Não é preciso dizer que não houve outra edição do jornalzinho dentro da PUC. Quem quiser saber em detalhes sobre esses fatos tem nos links já apontados o melhor caminho, além da leitura do livro O Imbecil Coletivo II, de Olavo de Carvalho, onde vários dos artigos em defesa de O Indivíduo encontram-se disponíveis. Além disso, é possível ler o jornal distribuído naquele 19 de novembro de 1997, na íntegra, no site de O Indivíduo, que foi refugiado na internet, existindo virtualmente desde então, transformando-se em um blog-site que virou referência para muitos despertos da mesma bolha gramsciana e de inspiração para o surgimento de outros tantos blogs e sites.

É por isso que considero este fato um dos grandes marcos dos primórdios que levaram ao surgimento da atual “nova direita”. Somente na internet era possível pensar e se expressar livremente. Somente pela internet era possível escapar e descobrir que existiam outras visões de mundo para além daquela monolítica hegemônica nas universidades e na imprensa. Mesmo Olavo de Carvalho, que sozinho fazia um estrago imenso nessa hegemonia na imprensa, e por isso despertava milhares de pessoas, só alcançava tanta gente por causa de seu site na internet. Aliás, a tática de seus adversários, logo que perceberam não serem páreo para derrotá-lo no plano do debate de ideias, foi a de calar sobre ele, não falar nada, fingir que não existia. Quando se tem a hegemonia, essa é a melhor tática mesmo. Não houvesse a internet e provavelmente isso teria dado certo. Mas, com a internet, os náufragos dessa cultura degradada, ideologizada até a medula e imbecilizante por isso mesmo, encontravam ao mesmo tempo um bunker e uma bússola.

A história da “nova direita”, portanto, é uma história nascida e vivida na e pela internet. Quando passamos o olhar pelas iniciativas que tentaram existir fora dela, no mundo “real”, é significativo que muito poucas vingaram. Tome-se o exemplo de revistas culturais, como a Dicta & Contradicta e a Nabuco, ambas com vida curta. A Dicta até permanece viva como um blog pouco atualizado, mas na prática acabou faz tempo. Assim como O Indivíduo teve apenas uma única edição em papel, mas permanece em atividade, ainda que com intervalos, há mais de 20 anos.

As causas para essa dificuldade de transcender a internet são várias, mas uma delas aquele evento ocorrido em 1997 também nos esclarece. A mesma “recepção” e reação ao jornalzinho O Indivíduo aconteceu no ano passado, com os conflitos havidos em várias universidades por causa da mera exibição de um documentário sobre Olavo de Carvalho. Os coletivos esquerdistas tentaram intimidar e censurar da mesma forma como fizeram 20 anos atrás. A diferença é que a bolha gramsciana estourou de fato na sociedade e absurdos como os ocorridos na PUC do Rio de Janeiro já não podem ser cometidos à luz do dia e impunemente. Ainda assim, fica claro que a “nova direita” nasceu em um ambiente cultural de guerra que tornou tudo muito mais difícil do que deveria ser em um contexto cultural normal, onde as ideias circulam e o debate é a regra, não a exceção.

Por que chamar isso de guerra? Conforme ensina Eugen Rosenstock-Huessy, em seu já clássico A Origem da Linguagem: “O problema na guerra (…) é que a linguagem não deve ser verdadeira senão no interior de um espaço limitado. Em outras palavras, na guerra sobressai o caráter regionalista da verdade. Eu não acredito no que o inimigo diz; e, sem me importar com o que ele diga, faço a guerra contra ele”. É precisamente o que fizeram contra o jornalzinho a turba odienta e os reitores censores. Tanto faz, como tanto fez, o que escreveram, disseram ou pensaram aqueles jovens idealizadores do jornalzinho. Uma única coisa interessava: de que lado eles estavam. Para não restar dúvida disso, vejam o que o vice-reitor comunitário disse a dois dos jovens naquele dia: “Parece que vocês falaram mal da Semana de Consciência Negra e isso não pega bem, né?”

E é disso que se trata em uma guerra cultural. Dane-se a verdade, dane-se o bom senso, dane-se tudo: só interessa o que “pega bem” dentro do grupo ao qual o sujeito pertence. Essa é a grande “conquista” do gramscismo: a divisão total da cultura e da sociedade em dois lados imunes às palavras vindas de fora e hipersensíveis às palavras vindas de dentro do seu lado. Nesse caso, tudo o que interessa é calar o outro lado e, se não for possível, não lhe dar ouvidos. Como continua ensinando Rosenstock-Huessy: “A vitória na guerra implica não ter escutado o inimigo!”

Em um tal estado de beligerância, fica evidente que a própria cultura é inviabilizada. Como plantar ou colher algo enquanto o terreno está tomado de soldados se matando? Ou se entra na batalha para ajudar a encerrá-la, ou se foge dela esperando que um dia termine. Dos que fogem a natureza cuida, mas o risco dos combatentes valentes é acharem que a vitória a qualquer preço é o que interessa. Basta dar um mínimo de atenção a algumas das discussões dentro da “nova direita”, aliás, para se constatar que esse risco é real e pode matar no berço um renascimento cultural que se tornou, enfim, possível. São raros os debates reais, quase não acontecem de fato. Basta a mínima diferença para imediatamente a discussão ser encerrada com um “block” ou, o que é mais comum, um lado sair carimbando o outro como “falso direitista”, “comunista enrustido”, “socialista fabiano”, “fanático” e está resolvido, não seria preciso mais escutar nada do que o outro tenha a dizer. É o equivalente da rotulação de “fascista” ou “racista” com que a esquerda recusa ouvir e impede de falar quem não seja da sua turma.

Enfim, qualquer um despertado da bolha gramscista é, no mesmo ato, convocado ao campo de batalha cultural, mesmo não estando minimamente preparado para isso. É a tragédia do nosso tempo. Daí porque é fácil de diagnosticar os dois maiores defeitos da “nova direita” desde a sua origem: a covardia dos melhores e a temeridade dos piores. Como no poema famoso de Yeats “A Segunda Vinda”, dois versos resumem quase toda a “nova direita” brasileira: “Aos melhores falta toda convicção, enquanto os piores estão cheios de apaixonada intensidade”. Daí porque dois estilos se consolidaram nesse meio cultural mais à direita na internet: a ironia impotente e a sátira humilhante. Mas disso trato na semana que vem.

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