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Se deficiente não faz sexo, deveria fazer
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Um segundo retorno é uma coisa esquisita. Há três meses eu comecei o meu post dizendo que estava quebrando o silêncio com um tema polêmico, escrevi e fiquei em silêncio novamente. Tive uma perda familiar bastante significativa e as coisas ficaram de ponta cabeça por um tempo. Depois de juntar os cacos, é tempo de retomar diálogos.

Agradeço aos leitores pelos comentários de todos os tons em relação ao meu último posicionamento. Achei muito interessante perceber como a temática da vida sexual de uma pessoa com deficiência causa curiosidade, vontade de entender, de saber como é e como não é. Para mim, esse tema é dedo numa ferida atemporal, é questionador de cultura, agrega pessoas e não pode ser esquecido. Faço questão de retomá-lo, até como forma de resposta aos comentários sobre o texto anterior, “Deficiente faz sexo?”.

Renato Ventura
A criatividade para vencer barreiras do dia a dia pode ser transportada para a cama. A ilustração de Renato Ventura diz o que precisa ser dito: abra a sua cabeça.

Durante um bom tempo da minha vida eu mesmo me fiz essa pergunta, mas acrescentava um agravante: “Será que eu consigo fazer sexo? Será que alguém teria vontade de se relacionar comigo? Será que eu tenho esse direito?” Pensar se você tem, ou não direito a uma vida afetiva saudável pode parecer estranho para quem não é deficiente, mas para mim isso fez sentido. Como comentei anteriormente, precisei encarar desafios que vieram muito antes disso e que tinham a ver com atividades básicas do dia a dia. Encontrar uma maneira para tomar banho, me vestir, comer, entrar na Kombi que me levava para a escola, chegar à sala de aula, entre muitas outras. Sendo assim, eu acreditava que eu não tinha tempo, ou não precisava me focar em relacionamentos, o que foi um grande erro. Eu estava era sendo medroso.

Encontrar alternativas é uma condição permanente no meu pensamento e eu demorei muito para perceber que eu fugia da possibilidade de levar isso para a cama. Fugia, porque eu queria descartar o meu corpo. Eu sou cadeirante, não sou alto, fico quase que o tempo todo sentado, sou um caniço de magro, minhas pernas são tortas, (a coluna também é) e além de tudo, eu não me movimento com facilidade. Movimentação de quadril? Esqueça. Na minha cabeça, meu corpo não corresponderia às exigências de atração e nem seria capaz de proporcionar uma vida sexual satisfatória nem para mim, nem para a minha parceira. Outro erro.

Eu só consegui começar a ter uma vida afetiva, e consequentemente, sexual ativa, depois que eu resolvi realmente encarar o meu corpo e a maneira como ele se manifesta. É preciso vestir a carne e tomar posse das possibilidades dela. Você não enxerga? Não ouve? Não mexe as pernas? Não tem um membro? Não mexe as pernas, nem os braços? Que pena. Mas o que você faz? O que você pode fazer diferente? O que te faz se sentir bem, emocionalmente e fisicamente, quando você está com alguém?

Eu não consigo responder se todos os deficientes fazem sexo. Mas se não fazem, deveriam fazer.

Não considere as suas referências do cinema, da televisão, das revistas e muito menos dos filmes pornográficos. Se o foco for esse, a possibilidade de você cair em um mar de frustrações é imensa. Aliás, acho que isso é válido para qualquer pessoa, deficiente ou não. Isso para mim foi outra conquista importante: ignorar o que eu não sou, o que eu não posso, o que eu não atinjo, o movimento que eu não tenho, ou qualquer outro “não” que me atrapalhe.

Iniciar essa mudança de postura é uma jornada particular e bastante íntima, como não poderia deixar de ser. O ponto importante é nunca se entregar à ideia de que isso não é necessário, de que não é possível e que o fato do deficiente querer fazer sexo é um luxo. Essa vivência é fundamental para se conhecer melhor, conviver de maneira mais positiva com os próprios limites e explorar o que traz “sim”, ao invés do “não”. Um bom começo é refletir sobre a imagem que se tem de si mesmo. Depois de pensar bastante sobre isso, descobri que eu sofria do complexo do Ursinho Puff. O Ursinho Puff é bondoso, bonitinho, querido, uma graça e as mulheres acham ele um fofo. Mas ninguém se imagina transando com o Ursinho Puff. Eu não sou um ursinho, sou um homem. Incorporei isso e tratei de pôr em prática.

Eu precisei desconstruir o mito de que ter autonomia de sobrevivência e ser uma pessoa sociável é o suficiente. Não é. Em algum momento da vida isso vai te alcançar e você vai ter que responder (Já falei isso também). Encarar o desafio é bastante compensador. Dar espaço para a descoberta da maneira que cada um tem de encantar outra pessoa, de envolver a sua (ou o seu) pretendente com a personalidade que você tem, ou ideias e posicionamento diante do mundo e, acima de tudo, perceber qual é o seu comportamento quando você está disposto a se apaixonar, se aventurar e se permitir é uma escolha que independe completamente da condição física.

A curiosidade em torno da situação e a necessidade que o deficiente tem de fazer as coisas de forma diferente podem ser aliadas fortíssimas no momento de conquista e sedução.

O toque de uma pessoa sem visão é muito mais sensível e, aliás, um parceiro assim vai sentir-se atraído por coisas que vão muito além do visual. Uma pessoa com baixa, ou nenhuma audição pode ler os lábios do outro, ou ainda, ensinar maneiras de dizer coisas picantes, ou apaixonantes, sem necessariamente dizer nada. O surdo não vai querer se concentrar nos sussurros, nem nos gemidos, e nem nos gritos enlouquecidos, mas pode estar atento ao movimento dos corpos, à intensidade dos toques e dar muito mais atenção aos olhos e sorrisos.

O deficiente físico pode usar o maravilhoso artefato da compensação. A falta de movimentação e sensibilidade em uma parte do corpo precisará ser compensada por outra coisa e esse campo tem infinitas possibilidades. Em alguma parte do corpo há sensibilidade, então o que você pode fazer com isso? O que você pode fazer melhor do que outras pessoas? Afinal, com tanta compensação na sua vida, você deve ter encontrado algo que acabou dominando mais. A criatividade em muitos momentos te possibilitou a fazer coisas e ela pode tornar a sua cama bem mais divertida.

Tudo isso é um soco na cara de padrões estéticos,veiculados e impostos diariamente, de condutas repressoras e de preconceitos contra qualquer tipo de relação humana. É uma resposta à vitimização, ou a tentativas de ocultar o deficiente, deixando-o de lado. A inclusão sexual da pessoa com deficiência exige que homens e mulheres repensem comportamentos que se repetem há séculos, relacionados à intolerância, ao desrespeito às diferenças e à falta de abertura para quebra de tabus.

Uma alternativa é possível.

Confira outros trabalhos do ilustrado Renato Ventura. Acesse o site www.renatoventura.com.br

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