• Carregando...
O que será das paredes de restaurantes se o jornal acabar?
| Foto:

Além de torcer silenciosamente para que o café não acabe pelo menos até o próximo fim do mundo, voltar ao trabalho em pleno sábado é uma das possíveis idiossincrasias de um jornalista. Enxergar uma futura matéria – ou mote para algum texto – em lugares ou situações aparentemente ordinárias, também.

Eis que, no sábado de plantão, vou com colegas de redação almoçar no Armazém California, estabelecimento que entra na categoria “descobri e não quero contar a mais ninguém.” O restaurante é comandado por Maged Khalil El Omairi, um sujeito gorducho e bem-humorado que, com forte sotaque libanês, faz piada quando pagamos com cartão. “Vai tirar da ‘saculiiinha de dinheiro?”

O Armazém fica na Rua Saldanha Marinho, ao lado da Catedral de Curitiba. O colorido das frutas, cereais, doces folhados e garrafas de cerveja e vinho que adornam e dão cheiro ao lugar, contrasta com o restante da região, um mundinho particular no centro da metrópole. Esta parte da Saldanha, mesmo nas barbas da Praça Tiradentes, teima em revelar algo de triste e desesperançoso. Prédios pichados, edifícios abandonados e bares duvidosos fazem parte do cenário.

Marcelo Andrade/ Gazeta do Povo
Saldanha Marinho, rua em processo de “desassombração.”

Ao fundo do Armazém, nas mesas cobertas com simpáticas toalinhas de plástico, a boa pedida é o espetacular arroz com lentilha, carne e cebola caramelizada na boa companhia de uma Gauden bem gelada. A novidade, agora, é uma mesinha na calçada. Com guarda-sol e tudo.

Papo vai e sfiha vem, algum colega apontou para a parede do lugar. Lá, competindo com quadros negros que mostram o preço das coisas, estava enquadrada uma matéria desta Gazeta, falando exatamente da Rua Saldanha Marinho. Parte do texto resvalava no estabelecimento, tido como uma luz naquela sombra toda: “Apesar de não existir mais a crença de que açougue e funerária são lugares ‘malditos’, só recentemente por ali abriu um armazém de comida árabe que pode ser a esperança de dias menos assombrados: a população, ainda que timidamente, tem ocupado a quadra, colocando um fim na prática dos mais antigos, de se afastar daquele local.”

Uma boa sensação deve percorrer o corpo e a mente de um jornalista – destes, de jornais impressos fadados à morte –, quando surge um encontro assim. Porque no ato de enquadrar algo, há uma valorização insubstituível. É o prestígio invisível que só o jornal impresso tem. Ou vocês imaginariam um printscreen de um tweet estampado na parede? Quem sabe a reimpressão de um post no Facebook? A comparação inexiste.

Marc Ferréz
“Meninos vendedores de jornais”. Rio de Janeiro, 1899.

No mesmo dia, mas aí já depois do trabalho, fui encontrar amigos no Bar do Ligeirinho, um patrimônio da boemia curitibana. Cultivando mesinhas na calçada e proporcionando uma visão privilegiada de parte da Praça Osório, o bar, no encontro da rua Voluntários da Pátria com a Alameda Dr. Carlos de Carvalho, foi criado por um ex-garçom do vizinho Stuart cujo apelido era, justamente, Ligeirinho. Para comer, carne de jacaré, javali e codorna. Para ouvir, Pearl Jam e Guns N’ Roses – há um estúdio logo acima do bar, inescapável.

Mas parte da graça do Ligeirinho está dentro dele. Nas paredes, há uma porção de matérias, notas e colunas enquadradas. Algumas de Reinaldo Bessa, colunista deste jornal. Outras, matérias políticas que citam o dono do bar. Há ainda resenhas e fotos diversas, algumas bem divertidas, como aquela de um porco inteiro em cima do balcão. Todas elas foram impressas em jornal e agora estão ali, ajudando a construir a aura e a história daquele lugar. O que poderia substituir aquilo? Um frame de um vídeo no YouTube? Um Power Point com fotos de jacaré? Não orna.

Recentemente fui convidado para participar de um bate-papo com alunos de jornalismo da Unibrasil, faculdade aqui de Curitiba. Uma das perguntas, a mais esperada por mim, foi a fatídica “o jornal impresso vai morrer?” Apresentei dois argumentos que ajudam a diminuir a velocidade dessa teoria que já vive sua prática.

Daniel Castellano/Gazeta do Povo

Um deles é justamente esse: o prestígio inexplicável que há em ser produto de um veículo impresso. Disse aos alunos que a contemplação do post-scriptum era quase como um fetiche, algo sexy, no limite do narcisismo – o que é genuinamente humano.

O outro é algo que, ainda, os meios virtuais não são capazes de fazer: hierarquizar a informação e entregá-la totalmente editada e em uma ordem coerentemente relevante em termos de importância noticiosa. Algo bem mais chato, mas importantíssimo.

Enfim, impressionante o que um sábado ensolarado de trabalho e algumas páginas de jornais penduradas nas paredes de restaurantes podem fazer com um jornalista que acaba de voltar de uma pequena folga. Feliz 2013 aí.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]