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O lado negro de Roberto Carlos
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Como os 50 anos de carreira do Rei se cruzam com os 50 anos da Motown, a gravadora que disseminou a Black Music pela América e pelo mundo


Álbum de 1971: o disco mais black de Roberto Carlos no ano mais black da música brasileira.

Berry Gordy, o criador da Motown Records.

Rio de Janeiro, fevereiro de 1959. O rapaz ajeita a gravata antes de subir ao palco. Como convém a todo crooner, não apenas a voz deveria estar perfeita. Aparência também é fundamental. Ainda mais em se tratando de uma estreia.

Apreensivo, o jovem pensa em todo o trajeto até ali. As memórias da infância em Cachoeiro do Itapemirim (ES), a vinda para o Rio com a família, o grupo musical do qual havia se desligado dois anos antes por desavença com o amigo Tião. Tudo vai se entrelaçando nos minutos anteriores à apresentação.

Mas o que realmente não sai da cabeça do rapaz é a melhor forma de fazer com que a apresentação se aproximasse do estilo do ídolo João Gilberto. Era nele que se espelhava. E foi assim, cantando bossa nova e prestes a completar 18 anos, que Roberto Carlos estreou como cantor profissional há 50 anos.

O que aquele rapaz franzino não sabia enquanto cantava aqueles versos sincopados na Boate Plaza, a mais badalada da então capital federal, era que exatamente um mês antes, a milhares de quilômetros de distância de Copacabana, surgia uma das principais influências que marcaria sua carreira. Em janeiro do mesmo ano, um ex-pugilista negro que lutou na Guerra da Coreia dava um passo importante na história da música ao fundar a gravadora que disseminaria o que se convencionou chamar de Black Music. Nascia a Motown Records.

Um ano antes de fundar a gravadora, Berry Gordy havia deixado a linha de montagem da fábrica da Ford em Detroit para se dedicar mais uma vez ao que realmente gostava, a música. Após falir uma loja de discos montada com US$ 700 emprestados do pai, Gordy estava novamente no cenário musical, desta vez compondo músicas que chegaram a fazer algum sucesso nas paradas americanas e britânicas. Mas ainda não era o suficiente.

Em um cenário em que a segregação racial delimitava os espaços públicos como banheiros e bancos de ônibus conforme a cor da pessoa em muitos estados americanos, o mercado fonográfico não poderia deixar de ser dominado por artistas brancos. Não existia nenhuma entidade que agregasse todo o talento de jovens músicos e produtores negros. E para tapar essa lacuna, Gordy recorreu novamente à ajuda do pai.

Com mais US$ 800 do bolso de seu velho, Gordy, aos 29 anos, fundava no dia 12 de janeiro de 1959 a Tamla Records, que 11 meses depois seria rebatizada de Motown (corruptela de Motor Town – cidade dos carros -, como é conhecida Detroit, principal pólo automobilístico da América). O soul, o rhthm and blues (R&B) e o funk – que surgiu uma década depois da Motown – ganhavam o espaço que mereciam.

Pelo casting da gravadora passaram artistas do calibre de Stevie Wonder, Temptations, Marvin Gaye, Lionel Richie, Jackson Five, Aretha Franklin, Wilson Picket, Diana Ross, Suprimes e tantos outros músicos que, conforme o slogan criado pelo próprio Gordy, faziam o som jovem da América. E o diferencial que distanciou a Montown das outras gravadoras não estava apenas em suas estrelas. Estava também na produção.

O estúdio da gravadora ficava 24 horas aberto aos músicos. Além disso, a experiência de Gordy como metalúrgico da indústria automobilística fez com que ele também implantasse na gravadora uma linha de montagem, com um time próprio de compositores, uma banda de estúdio entrosada e instruções de canto e dança aos cantores. Tudo para que o motor da máquina roncasse alto, sem bater as ventoinhas durante as gravações.

Mas apesar de terem surgido para a música no mesmo ano, Roberto Carlos e Motown levariam quase uma década para cruzarem seus destinos.

No final dos anos 60, já consagrado como artista mais popular do Brasil, Roberto começava a se desvincular da imagem da Jovem Guarda. A batida iê-iê-iê dava lugar a arranjos elaborados, com uma linha de contrabaixo pulsante, guitarras cortantes, uma bateria ritmada e cheia de viradas, metais melódicos e backing vocals femininos. As letras passaram dos amores adolescentes, beijinhos no cinema e carangas envenenadas para o desejo pela mulher, a dor da separação, a vontade de se ter novamente quem se gosta e a raiva por ter sido desprezado. E o primeiro flerte de Roberto Carlos com todos esses ingredientes foi no disco O Inimitável, de 1968. As músicas Ciúmes de Você e Não Há Dinheiro que Pague foram as primeiras de uma incursão bem-sucedida do Rei pelo universo da Black Music.

No disco seguinte, em 1969, a pegada veio mais forte. Eram duas músicas com levada black (Nada Vai Me Convencer e Não Vou Ficar), sendo que uma vinha praticamente direto da fonte. Quando soube que o velho amigo de adolescência andava com os ouvidos ligados na Black Music, Tim Maia, ou simplesmente Tião – aquele rapaz com quem Roberto se desentendeu quando ambos formaram a primeira banda de suas carreiras, o Sputniks -, não pensou duas vezes em procurar o Rei para oferecer exatamente o que ele queria em seu próximo disco: um soul impactante.

E Tim sabia muito bem do que falava quando procurou Roberto. Afinal, ele não só havia vivido nos guetos americanos exatamente no período em que a Motown estourou, como participou diretamente do processo de surgimento da Black Music, integrando um grupo vocal de R&B chamado The Ideals.

Sebastião Rodrigues Maia, ainda chamado apenas de Tião, chegou a Nova Iorque aos 16 anos, com US$ 12 no bolso e nenhum inglês na língua, no mesmo ano de 1959 – cinco meses depois da fundação da Motown e quatro após a estreia de Roberto. Retornou em 1963, deportado por porte de maconha, que fumou a primeira vez ao som de um R&B que tocava no rádio de uma grupo de negros e porto-riquenhos com quem fez amizade em Tarritown, cidade próxima a Nova Iorque onde morou a maior parte dos cinco anos em que esteve na América.

A música que Tim ofereceu para o álbum era Você, cujos versos (Você é algo assim/É tudo pra mim/É como eu sonhava/Baby) não se sabe por que não agradaram a Roberto, sendo gravada apenas em 1971, pelo próprio autor em seu segundo disco. Mesmo assim, o Rei não deixou Tim na mão. Pediu a ele que compusesse outro soul, com uma batida forte e falando de um sujeito que não queria mais saber da namorada. O resultado foi Não Vou Ficar, cujos versos casavam perfeitamente com a batida forte da melodia (Há muito tempo eu vivi calado/Mas agora resolvi falar/Chegou a hora/Tem que ser agora/E com você não posso mais ficar). Tudo elaborado por Tim e exatamente como Roberto queria.

Black Music e fé
No disco de 1970, Roberto Carlos começa a série de canções religiosas que marcariam sua carreira. E mais uma vez recorre à influência da música negra, dessa vez o gospel, para compor Jesus Cristo. A música, uma das inúmeras parcerias com Erasmo Carlos, levou cerca de seis meses para ser concluída. Tudo porque Roberto não encontrava um pianista cuja sonoridade se aproximasse das músicas de James Brown, a quem o cantor andava ouvindo bastante aqueles tempos.

Depois de tentativas com vários músicos, a produção de Roberto Carlos convidou um pianista da noite carioca chamado Dom Salvador para tentar aproximar a sonoridade da música à de Mr. Dynamite. E ele era realmente o cara para a missão. Dom Salvador já havia tocado nos Estados Unidos e conhecia não apenas a sonoridade, mas também os próprios músicos do universo black americano. Tanto que, depois de gravar com Roberto, Dom Salvador, que, aliás, mora há 36 anos em Nova Iorque, marcou seu nome no surgimento da MPBlack – mescla do soul com música brasileira. Dom Salvador é um dos caras de cabelo Black Power e beca invocada na capa do disco Som, Sangue e Raça, de 1971, do grupo Abolição, álbum referência da Black Music brasileira.

Mil novecentos e setenta e um, aliás, foi um ano marco para o som black no Brasil. Além do disco Som, Sangue e Raça, um personagem fundamental dessa história havia acabado de chegar dos Estados Unidos com um visual incrementado. Baseado nos cafetões do Harlem, o bairro mais negro de Nova Iorque, e nos ídolos King Curtis Combo (de quem copiou o nome) e James Brown (de quem copiou o estilo de dança e o uso de uma capa), Gerson Rodrigues Côrtes, ou Gerson King Combo, cujo irmão, Getúlio Cortês, foi um dos principais compositores de Roberto Carlos na fase Jovem Guarda, retornou de uma turnê pela América não só com roupas e adereços que remetiam ao estilo da juventude negra americana, mas também preparado para disseminar o ideal com que havia tido contato nos guetos americanos. Virou o principal nome do movimento Black Rio – direto de Madureira para todo o Brasil. E Roberto Carlos, que já estava nesse barco, resolveu remar mais forte na direção da Black Music aquele ano.

O disco do Rei de 1971 é o mais black de todos. São quatro músicas do estilo: Como Dois e Dois, Você não Sabe o que Vai Perder, Eu só Tenho um Caminho e Todos Estão Surdos. Curiosamente, foi no disco mais black da carreira que Roberto Carlos se consolidou no estilo com que mais se identificou: o Romântico. Tudo graças a Detalhes – sem dúvida, a principal canção do Rei nesses 50 anos de carreira. Mas, assim como em Jesus Cristo em 1969, no disco de 1971 Roberto incorpora mais uma vez a fé à Black Music.

Primeiro entra a bateria. Em seguida, entram juntos a guitarra e o baixo ritmado (coluna vertebral da canção, que conduz a melodia do começo ao fim). Um coral feminino ao fundo, os sopros dos metais e, como não poderia deixar de ser, o órgão Hammond – uma das principais identidades da Black Music – completando as lacunas. Só que, ao contrário do que condiz à descrição, ao invés de um pastor negro de alguma igreja do Sul dos Estados Unidos, quem clama para que Ele, Jesus Cristo, volte e ensine a todos que a verdade não mudou é Roberto Carlos. Tal e qual os pastores presbiterianos do Mississipi, da Geórgia ou do Alabama, Roberto não canta em Todos Estão Surdos. Usa a música para pregar a palavra do Senhor:

Tanta gente se esqueceu
Que a verdade não mudou
Quando a paz foi ensinada
Pouca gente escutou
Meu Amigo volte logo
Venha ensinar meu povo
O amor é importante
Vem dizer tudo de novo

Depois do disco de 1971, Roberto ainda fez outras incursões pela Black Music, como no funk Não Adianta Nada, de 1973. Mas a pegada já não era a mesma. Coincidentemente, depois de 1971 a Motown também já não era mais a mesma.

Naquele mesmo ano, Gordy mudou a sede de Detroit para Los Angeles. E, após dominar o top parade das rádios americanas desde 1962, a partir de então a gravadora foi pouco a pouco perdendo sua personalidade, o que desembocou na incorporação pela Gravadora Universal em 1998. Hoje, o braço da Motown ainda mantém nomes como Stevie Wonder e Temptations, mas se dedica principalmente a gravações de hip hop.

Tudo muito diferente de 50 anos atrás, quando os músicos da gravadora influenciaram decisivamente não apenas a música, mas também todo o estilo de vida da sociedade americana, que não só acabou com a segregação racial, como também elegeu um presidente negro que cresceu ouvindo justamente as canções da Motown. Assim como Roberto Carlos há cerca de 40 anos, a sociedade americana também ouviu muito a batida da Motown Records até que negros e brancos pudessem gritar juntos pelas ruas do país o bordão Yes, We Can! Eles não estavam surdos.

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* Fontes bibliográficas: Roberto Carlos em Detalhes (Paulo Cesar de Araújo, Editora Planeta); Vale Tudo – o Som e a Fúria de Tim Maia (Nelson Motta, Editora Objetiva), Batidão – uma História do Funk (Silvio Essinger, Editora Record); Dez, Nota Dez! – Eu Sou Carlos Imperial (Denilson Monteiro, Matrix Editora). Sites da Motown Records, Hammond Brasil, G1, BBC e Euronews.

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