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A Matemática é algo inventado ou descoberto?
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“A Escola de Atenas”, de Rafael, inclui um punhadinho de matemáticos: inventores ou descobridores?

Meu amigo Wagner, leitor assíduo do blog, me envia comentários sobre um texto do Marcelo Gleiser publicado na Folha de S.Paulo de domingo, dia 31. Beleza e verdade é uma espécie de “continuação” de Será Deus um matemático?, publicado há quase um mês (aponto os links para o blog de Gleiser porque o conteúdo da Folha é fechado para não-assinantes).

Confira abaixo. Em itálico vão trechos do texto original de Gleiser, e em tipologia normal vai o comentário do Wagner:

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Gleiser: (…) Toquei outro dia na questão de a matemática ser uma descoberta ou uma invenção humana.
Aqueles que defendem que ela seja uma descoberta creem que existem verdades universais e inalteráveis, independentes da criatividade humana. Nossa pesquisa simplesmente desvenda as leis e teoremas que estão por aí, existindo em algum meta-espaço das ideias, como dizia já Platão.

Comentário: Aqui já há um erro, não sei se proposital ou por ignorância filosófica. As leis e teoremas não têm existência de per si e muito menos num meta-espaço. Gleiser parece ter parado seus estudos de filosofia nos gregos ou, ao menos, pulado toda a Idade Média e nunca ter ouvido falar da querela sobre o nominalismo. E muito menos conhecer o argumento escolástico de que essas leis e teoremas são realidades não existentes de per si, mas com fundamento in re. A não ser que ele pense que triângulos são uma realidade existente num meta-espaço… Isso para não falar em mamíferos, por exemplo.

Gleiser: Nesse caso, uma civilização alienígena descobriria a mesma matemática, mesmo se a representasse com símbolos distintos. Se a matemática for uma descoberta, todas as inteligências cósmicas (se existirem) vão obter os mesmos resultados. Assim, ela seria uma língua universal e única.

Comentário: Correto.

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Em detalhe do afresco, Pitágoras escreve, observado por Averróis e um filósofo de identificação controversa.

Gleiser: Os que creem que a matemática é inventada, como eu, argumentam que nosso cérebro é produto de milhões de anos de evolução em circunstâncias bem particulares, que definiram o progresso da vida no nosso planeta.

Comentário: Aqui ele parece fazer uma inferência indevida. Eu também acredito que nosso cérebro é produto de milhões de anos de evolução. Mas como desse fato eu infiro que a matemática é inventada? Não há relação causal ou inferência unívoca entre essas duas colocações.

Gleiser: Conexões entre a realidade que percebemos e abstrações geométricas e algébricas são resultado de como vemos e interpretamos o mundo.
Em outras palavras, a matemática humana é produto da nossa história evolutiva.

Comentário: Certamente aqui Gleiser não fala como físico, pois essa proposição não é falseável e nem se baseia em nenhum método aceito pelas ciências naturais. Isso, evidentemente, não desqualifica seu argumento. Ele parece que intuitivamente parte de um princípio kantiano no qual o “fenômeno” sobre o qual a ciência se debruça é o “produto” do noumenon (do qual nada se pode falar segundo Kant) e as categorias da razão humana. OK, vamos por um momento admitir isso. Mas isso é metafísica e não ciência natural! (É comum a crítica à filosofia grega e escolástica de que partem de um “realismo ingênuo”. Até posso concordar em parte com essa crítica. Mas, sem dúvida, o que Gleiser faz aqui poderia certamente ser caracterizado igualmente como um “idealismo ingênuo”).

Gleiser: Claro, civilizações que se desenvolverem em situações semelhantes (na superfície de um planeta rochoso com muita água e vegetação, sob um sol irradiando principalmente na porção visível do espectro eletromagnético etc.) poderão obter uma matemática semelhante: a matemática reflete as mentes que a criam.

Comentário: Gleiser não fala, mas imagino que o encadeamento completo de seu raciocínio é que o “planeta rochoso etc…” determina (ou condiciona?) a evolução material da mente humana que, por sua vez, “vê” (e “matematiza”) o mesmo planeta de uma dada maneira. Aqui eu vejo dois problemas, ao menos da maneira como Gleiser argumenta.
a) partindo dessa premissa eu não posso fazer ciência ou, ao menos, devo admitir que as leis científicas são mutáveis no tempo – e não por incompletude ou erro ou mesmo incompatibilidade com o real (aqui leia-se objeto) –, mas porque a mente humana, ao evoluir, modifica a lei que explica o mesmo “planeta rochoso” e, por extensão, o que está à sua volta. Logo, a lei que hoje explica ou descreve os fenômenos físicos do “planeta rochoso” (entenda-se como realidade), como é fruto da mente humana e essa evolui, amanhã não explicará mais os mesmos fenômenos porque a mente humana terá evoluído (a não ser que admita que a evolução do homem chegou ao fim) e as leis serão outras, já que frutos da mente humana. Não há, então, sentido nenhum em se fazer previsões científicas de acontecimentos futuros ou estudar o passado do cosmos, por exemplo.
b) Aqui apenas um exemplo ilustrativo. Como ficaria um indivíduo, originado de um planeta cujas características sejam muito diferentes da Terra e, portanto, cuja mente evoluiu de modo diferente e que tenha aterrissado por aqui, se estivesse junto com um terráqueo numa linha de trem e que a locomotiva se movimentasse a Z km/h e estivesse a uma distância Y e, dada sua mente e suas leis matemáticas, calculasse o momento do choque com alguns minutos a mais de diferença em relação ao terráqueo? Seria atropelado se não saísse? Se sim, posso dizer que suas leis descrevem o real?

Gleiser: Para os que creem na matemática como linguagem universal, essa estética leva à existência de uma única verdade. Acho isso preocupante, pois me soa como ecos de um monoteísmo judaico-cristão, uma infiltração religiosa, mesmo que sutil e metafórica, nas ciências. Melhor é defender a matemática e a beleza como nossa invenção. Criamos uma linguagem para descrever o mundo, que não podemos deixar de achar bela.

Comentário: Aqui quase não é preciso comentar nada. É autoexplicativo. Gleiser não está preocupado em buscar a verdade. Sua preocupação é conter toda e qualquer possibilidade de “ecos monoteístas judaico-cristãos” nas ciências, mesmo que isso seja o que corresponda ao real e, portanto, à verdade. Logo, “é melhor defender que a matemática é nossa invenção” mesmo que não o seja, pois assim podemos manter nossa ideologia antijudaico-cristã. E quanto ao real… bom, isso não importa!

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