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Ken Ham (à direita) e Bill Nye (à esquerda) discutiram civilizadamente por duas horas e meia, mas não chegaram a nenhum ponto de consenso. (Foto: screenshot do YouTube)
Ken Ham (à direita) e Bill Nye (à esquerda) discutiram civilizadamente por duas horas e meia, mas não chegaram a nenhum ponto de consenso. (Foto: screenshot do YouTube)| Foto:

Finalmente consegui assistir ao debate entre Bill Nye e Ken Ham. Não achei uma versão legendada (assim como também não achei uma transcrição completa do debate — se os leitores encontrarem, é só avisar pelos comentários), então fico aqui com o vídeo “oficial”, no canal do Answers in Genesis no YouTube (o debate pra valer começa no minuto 13, podem pular direto pra lá):

O tema que norteou o debate era “a criação é um modelo viável para explicar as origens nessa era científica?”. Mais do que descrever o debate, porque melhor é que todos assistam, deixo a minha opinião a respeito do que Ham (cujo sotaque australiano me lembrou da única vez que eu conversei com uma pessoa em inglês sem entender quase nada do que ela dizia) e Nye disseram. Para começar, deixo bem claro que não tenho exatamente um lado nessa questão. Sem dúvida concordo com Ken Ham sobre a existência de um Deus criador, e sobre a autoridade da Bíblia como palavra de Deus. Mas rejeito completamente suas interpretações da Bíblia. E fico com Bill Nye sobre a superioridade da teoria da evolução como a melhor explicação para a diversidade da vida no planeta.

Em primeiro lugar, houve uma dose considerável de digressão. Considerando que foi um debate de duas horas e meia, quem sabe seja até aceitável. Não creio que estivesse em questão, por exemplo, o fato de uma pessoa poder ou não poder ser um bom cientista simplesmente por ser criacionista (se bem que, nessa época em que se discute se um gênio da tecnologia pode ou não pode comandar uma empresa de tecnologia por causa de suas opiniões sobre união homossexual, talvez a discussão não seja tão estúpida como parece. E efetivamente a imprensa às vezes coloca “criacionistas” contra “cientistas” como se fossem categorias excludentes entre si). Em outras ocasiões a discussão chegou a ser surreal, como o debate sobre as habilidades de Noé como construtor de navios, já que sua arca, a julgar pela descrição bíblica, só não seria maior que os grandes transatlânticos do século 20.

“Como é que eu vim parar nesse debate?” (Foto: Divulgação)

Ham fez uma série de observações sensatas: disse, por exemplo, que a evolução vem sendo “sequestrada” para promover o ateísmo (isso é algo com que inclusive evolucionistas religiosos, como Karl Giberson e Ken Miller, concordam); que o criacionista e o evolucionista partem das mesmas evidências (o DNA, as estrelas, os cânions etc.); que, por mais que haja uma controvérsia forte sobre criação e evolução, não é isso que determina o destino eterno das pessoas (ninguém irá para o inferno ou para o céu por ser criacionista, evolucionista, defensor do Design Inteligente ou o que for). O problema de Ham é a interpretação um tanto peculiar que ele faz da Escritura, considerando o Gênesis totalmente literal — por exemplo, ele nega a evolução com base no fato de ser impossível haver morte antes do pecado original, um tema de que já tratamos aqui no blog, quatro anos atrás.

Nye, por sua vez, gastou boa parte do tempo que teve à disposição tentando mostrar as evidências em favor da evolução. Mostrou que as “lacunas” estão sendo fechadas, falou de todas as evidências a respeito da idade do universo e da Terra, enfim, deu um banho de ciência. E citou Francis Collins (não pelo nome, se não me engano; Nye se referiu ao “diretor do NIH”) como prova de que muitas pessoas de fé abraçam as descobertas da ciência (incluindo a teoria da evolução) e de que muitos cientistas têm fé, uma conciliação que Ham não sabe fazer. O que me pergunto é se tudo o que Nye apresentou é realmente a estratégia mais adequada para se debater com um criacionista.

ken ham e bill nye em debate sobre criação e evolução

Ken Ham (à direita) e Bill Nye (à esquerda) discutiram civilizadamente por duas horas e meia, mas não chegaram a nenhum ponto de consenso. (Foto: screenshot do YouTube)

Quem se lembra da entrevista que William Lane Craig deu ao blog, em 2012, vai se recordar de suas palavras sobre a melhor maneira de desacreditar um criacionista: atacar não a sua ciência, mas suas crenças religiosas. E Ham levantou (involuntariamente, claro) várias vezes a bola para Nye cortar, mas o “Science Guy” não cortou. Várias vezes Ham deixou claro que defendia a leitura do Gênesis como 100% literal — ele inclusive deu uma aulinha, mais para o fim do debate, sobre o que é e o que não é literal na Bíblia, citando os conteúdos poéticos, proféticos e morais. Mas o Gênesis não é nem poesia, nem profecia, nem moral: é história, disse Ham, e por isso deve ser interpretado literalmente. Mas, se é assim, por que o relato do capítulo 1 tem o homem criado depois dos animais, e no capítulo 2 ele é criado antes? Por que o dia e a noite são criados antes do Sol e da Lua? Por que num relato o homem e a mulher são criados simultaneamente, e em outro a mulher é criada depois do homem? São contradições que mesmo cristãos do fim da Antiguidade, como Orígenes, identificaram, e que poderiam deixar Ham em maus lençóis, caso Nye as tivesse mencionado. Mas não mencionou.

Acho que todo o debate pode ser resumido em uma pergunta da plateia que aparece lá por 2h04 de filme, e que é algo como “o que faria você mudar de ideia?” Nye deixou claro, ali e em outras ocasiões durante o debate, que bastava uma evidência. “Se vocês acharem um exemplo que confirme o seu modelo, vocês mudarão o mundo”, havia dito ele anteriormente. Ham, por outro lado, se mostrou inflexível, apoiando-se no fato de a Bíblia ser a palavra de Deus; e, se ela é o que diz ser (voltaremos a isso depois), então o que está lá é verdadeiro em sua interpretação literal (daquilo que deve ser interpretado literalmente, claro). Eu, particularmente, acho que “se a Bíblia é verdadeira, então a Terra tem 6 mil anos” é um tremendo de um non sequitur. E uma coisa que passa batida muitas vezes é que a Bíblia propriamente dita não diz nem o que é inspirado e o que não é, e nem como se deve interpretar cada um de seus livros. É um fato ressaltado por católicos quando discutem com protestantes sobre o Sola Scriptura. Quem diz, por exemplo, que as cartas de São Paulo aos coríntios são inspiradas, mas o Pastor de Hermas não é? Essa resposta não está na Bíblia, mas na autoridade dos primeiros cristãos reunidos em concílios. O mesmo vale para a interpretação da Escritura. Ham ignora o sábio conselho do cardeal inquisidor São Roberto Belarmino, em sua (já citada aqui) carta a Antonio Foscarini, escrita durante o processo de Galileu: “Digo que se houvesse uma verdadeira demonstração de que o Sol está no centro do mundo e a Terra no terceiro céu, e que o Sol não circunda a terra, mas a Terra circunda o Sol, então seria preciso ir com muita consideração em explicar as Escrituras que parecem contrárias, e antes dizer que não as entendemos do que dizer que é falso o que se demonstra”.

E vocês, viram o debate? O que acharam dos argumentos apresentados?

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