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Este é o caminho para que Lear se reencontre consigo mesmo: ele precisa se reavaliar como pai e como governante também. Ele, que por tanto tempo havia exercido o poder, esqueceu-se que era também sujeito às necessidades a que todos os outros homens são sujeitos – à fome, ao frio e à necessidade de amor. A jornada de Lear é a de um rei que se esqueceu que era humano e que, chegado ao ponto mais baixo na escada dos seres, despido de todos os luxos, de roupas, de amigos e até da própria razão – porque, neste doloroso processo, Lear enlouquece –, terá que reaprender a sua própria humanidade. Só então, depois de uma trajetória de intenso sofrimento, Lear pode renascer como homem. Sem dúvida, uma perspectiva corajosa para Shakespeare propor em uma época de absolutismo.

Nas peças de Shakespeare, como na vida, não há justiça poética; os bons não são recompensados nem vivem felizes para sempre. A generosa Cordélia morre, assim como Lear e as duas filhas más. Bons e maus são tragados pela morte e o universo de Shakespeare tem o sabor amargo da vida.

São essas correspondências entre os personagens de Shakespeare, em suas reflexões aguçadas sobre o que significa ser humano, em suas trajetórias de erro, de sofrimento e de aprendizado, e a nossa própria vida, certamente vivida em uma escala menos heroica, que nos fazem sempre retornar aos textos do bardo.

Os personagens de Shakespeare vivem intensamente seus conflitos, não mais os conflitos contra o destino, contra os deuses ou contra a sociedade, mas conflitos internos, que antecipam os dilemas e as contradições do indivíduo contemporâneo.

Frases e expressões memoráveis de William Shakespeare inspiraram títulos de muitas obras: Os Homens Ocos, de T. S. Eliot; O Som e a Fúria, de William Faulkner; O Inverno de Nosso Desgosto, de John Steinbeck; e, recentemente, Graça Infinita, de David Foster Wallace. Os exemplos são inúmeros e ficam aqui registrados apenas para evidenciar o permanente interesse de grandes escritores que beberam da fonte shakespeariana. Como havia previsto Ben Jonson, seu colega e dramaturgo, "ele não pertencia a uma época, mas a toda a eternidade".

Mas nós também, leitores comuns, experimentamos a necessidade de Shakespeare. Por quê? O que o torna atual? Por que precisamos lê-lo? São seus personagens, sua linguagem poética ou as reflexões que nos oferece que o tornam necessário ao século 21? Ou tudo isso junto?

Bernard Shaw celebrou, com sua ironia habitual, o talento de Shakespeare "em contar uma história, desde que esta já tivesse sido contada antes". De fato, o bardo toma emprestado enredos das mais diversas fontes – lendas, mitos, peças, poemas e narrativas históricas. Ao recontar histórias, ele não estava preocupado com a originalidade dos enredos ou com a exatidão dos fatos. O que fez foi transformar as fontes em cenas com alto potencial emocional, que tratam do que significa ser um homem, em toda a sua grandeza e miséria.

E é por isso que ele nos interessa, porque em cada uma de suas peças, desafia-nos a pensar sobre um aspecto diferente da natureza humana. Como Hamlet, o mais reflexivo de seus personagens, nos perguntamos: "O que é um homem, se o seu grande bem é dormir e comer?" (trad. Barbara Heliodora). Somos seres bestiais, como os animais, ou guardamos ainda alguma coisa de divino? O que nos aproxima dos deuses? Que lugar ocupa a razão em nossa vida? Que sentimentos verdadeiramente nos movem – o amor, a ambição, a inveja, o ciúme, o medo, a vingança? Sabemos perdoar? É possível aprender a perdoar? É possível mudar?

Os personagens de Shakespeare vivem intensamente seus conflitos, não mais os conflitos contra o destino, contra os deuses ou contra a sociedade, mas conflitos internos, que antecipam os dilemas e as contradições do indivíduo contemporâneo. Hamlet, o grande herói da consciência, viveu na transição entre o mundo da vingança medieval e o mundo renascentista das leis e da justiça do Estado; só conseguiu agir contra seu tio quando apaziguou sua própria consciência e seu senso de justiça individual. Da mesma forma, Lear e Macbeth lutaram contra si mesmos, escravos de seus próprios "excessos": o primeiro, de uma ira avassaladora e o segundo, de uma ambição desmedida. Eles continuam a nos dizer respeito, porque, como eles, somos reféns de nossas próprias paixões, de nossa consciência e de nossos limites. Os personagens de Shakespeare, em suas trajetórias trágicas, nos ajudam a nos compreender melhor.

Shakespeare foi um escritor versátil. Em 22 anos de carreira e 36 peças de sua autoria (mais duas, de autoria dividida com John Fletcher), escreveu em vários gêneros – comédia, tragédia, peça histórica. Mas no teatro, como na vida, compreendeu que os limites entre tragédia e comédia eram tênues. Em Antônio e Cleópatra, é o bobo que traz o cesto com a serpente que matará Cleópatra. Em Hamlet, a cena dos coveiros antecipa a conversa sobre o que acontece com o corpo após a morte e precede as reflexões mais profundas sobre a finitude humana. Em Rei Lear, um bobo amargo acompanha um rei louco. Em Macbeth, é na cena com o porteiro bêbado que se descobre o rei assassinado. Quem dentre nós já não experimentou esta mistura entre riso e lágrimas, entre cômico e trágico?

Shakespeare versificou a vida, utilizando ricas imagens, tanto verbais quanto visuais. Disso sabem os atores, do tempo do bardo e do nosso, que com facilidade memorizam o texto, uma vez vencido o preconceito contra o verso: "A vida é só uma sombra, um pobre ator que grita e se debate, depois é esquecido. Uma história, contada por um idiota, cheia de som e fúria, significando, nada." (Macbeth, trad. Barbara Heliodora).

A metáfora fundamental para Shakespeare, que era ator, é a da vida como um grande palco, onde homens e mulheres são atores que interpretam diferentes papéis. Shakespeare divide a vida em sete épocas, as chamadas sete idades do homem, como aparece no trecho abaixo, parafraseado de Como Gostais: tudo começa com o bebê, chorando e regurgitando no colo da ama; depois, vem o estudante, que se arrasta sem vontade para a escola; chega a época do amor, e o namorado, como uma fornalha, compõe versos até mesmo para a sobrancelha da amada; então, é a idade do soldado, que arrisca a própria vida pela glória vã que irá certamente matá-lo; chega-se à meia-idade, e o juiz gordo e severo não segue as leis pelas quais ele condena; na penúltima idade, a voz e a vista ficam fracas e as canelas secas; então, finalmente, o último estágio da vida, quando a velhice domina tanto o corpo quanto a mente, adormecendo os sentidos e apagando a memória: "sem sentidos, sem olhos, sem mais nada". Em nossa época, não podemos deixar de pensar, em relação ao último estágio, também no mal de Alzheimer.

Ao longo das peças, Shakespeare aprofunda as reflexões sobre cada uma das épocas da vida. Em sua obra máxima, Rei Lear, por exemplo, propõe uma profunda reflexão sobre a velhice, a perda do poder e a relação entre pais e filhos. Lear é um rei muito velho, que ocupa o poder há muitos anos, tantos que já se esqueceu como é não ser obedecido. Quando sua filha mais nova, Cordélia, se recusa a bajulá-lo publicamente, na cerimônia de divisão do reino, ele, intempestivamente, a deserda; termina punindo-a e punindo a si mesmo ao dividir o seu reino entre as duas filhas mais velhas. Estas, que foram generosas em elogios ao pai, quando assumem o poder, mostram-se mesquinhas e cruéis para com a velhice do rei. Terminam expulsando o pai para fora de casa, em noite de tempestade, e proibindo qualquer súdito de recolhê-lo.

Em meio à tempestade, externa e interna, pois há uma tempestade na charneca e também na mente de Lear, vestido em farrapos e exposto ao frio, o rei atinge uma compreensão mais profunda sobre os mecanismos que movem o mundo e os homens. Compreende que suas filhas mais velhas foram falsas, ingratas e interesseiras, que ele não as conhecia, e que apenas Cordélia falou com o coração. Compreende que foi profundamente injusto com a filha caçula. Em sua experiência de miséria, o rei aprende a humildade e passa a enxergar aqueles que antes não via, os súditos pobres de seu reino; sente profundamente não lhes ter ajudado quando tinha poder:

Vocês que não têm casa.

Desgraçados sem roupa, onde estiverem,

Enfrentando o açoite da tormenta,

Como podem assim, com flancos magros,

Os seus trapos rasgados defendê-los

De tempo assim? Ai, eu cuidei bem pouco

De tudo isso. Cuida-te, Pompa;

Expõe-te ao que sentem os mendigos,

Para doar a eles teu supérfluo

E o céu te ver mais justa.

(Lear, trad. Barbara Heliodora)

Liana de camargo Leão, professora de Letras Estrangeiras Modernas da Universidade Federal do Paraná, coordenadora do website Shakespeare Brasil e editora do site MIT Global Shakespeare

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