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“Balloon Venus”, de Jeff Koons, no Centre Pompidou, em Paris. | Sandra M. Stroparo/Especial para a Gazeta do Povo
“Balloon Venus”, de Jeff Koons, no Centre Pompidou, em Paris.| Foto: Sandra M. Stroparo/Especial para a Gazeta do Povo

Há mais ou menos 28 mil anos, alguém andava com uma imagenzinha de mulher, uma escultura de 11 centímetros, e a perdeu, ou perdeu-se com ela em Willendorf, na região de Wachau, na Áustria. Em 1908, um grupo de pesquisadores austríacos escavando uma área do vale do Danúbio a encontrou e revelou ao mundo. Intacta, ao ser lavada pela primeira vez deixou correr com a água a cor vermelha que a coloria e que ainda resta, pouca, nas reentrâncias do corpo da imagem.

Muitas e muitas figuras femininas já foram encontradas: madeira, osso, pedra, barro. Mas nenhuma, dizem os arqueólogos, secundados pelos historiadores da arte, tão interessante, completa, perfeita, como a Vênus de Willendorf. Feita de calcário oolítico, ela foi encontrada em uma região onde essa pedra não existe. Ou seja, a figura viajou com seu dono por muitos quilômetros antes que se perdesse ali, esquecida por milhares de anos, até que o nosso tempo a encontrasse. Que importância teria essa escultura para quem a guardava?

Nenhum consenso sobre isso. As ideias clássicas de “deusa da fertilidade” e “mãe terra” submetem a imagem a uma adoração religiosa — e uma deusa da fertilidade suporia um grupo já ligado à agricultura, mas esse não era o caso. Outras considerações de historiadores do paleolítico dizem que os homens caçadores do período tinham dois interesses principais: cervos e mulheres... Assim, a nossa respeitável Vênus, como alguma figura nas paredes das cavernas, poderia ser talvez o equivalente de uma imagem da revista Playboy para os homens de hoje.

“Vênus de Willendorf”, com cerca de 29 mil anos. Matthias Kabel/Creative Commons

Representação divina ou erotismo paleolítico, claramente a escultura tinha alguma importância para quem a fez e para quem a guardou. Mesmo hoje os estudiosos ficam impressionados com o cuidado do acabamento, o refinamento dos contornos, a harmonia das proporções: uma mulher sem rosto, com uma espécie de grande capacete de tranças envolvendo toda a cabeça; ombros estreitos, braços frágeis usando braceletes e quadris muito largos, evidenciando as nádegas, e acompanhando o grande volume da barriga e das coxas; os seios fartos acolhem as mãozinhas postas confortavelmente sobre eles e o monte de Vênus, bem como a vulva, são bastante explícitos. Essa riqueza de detalhes é única no período e obviamente deu à estatuetinha uma repercussão sem precedentes.

E o próprio epíteto, Vênus, já foi também razão de disputas. O problema é que um marquês francês, no século 19, inventou de batizar uma escultura feminina pré-histórica (a primeira encontrada) de “Vênus Impudica”, numa paráfrase às tradicionais Vênus chamadas de Pudicas porque suas imagens as representam, sempre, cobrindo, ao menos um pouco, partes mais delicadas de seu corpo. Depois do marquês, todas as outras esculturas acabaram sendo chamadas também de Vênus, embora os historiadores da arte reclamem da relação de comparação estabelecida com o padrão clássico grego.

Mas hoje, a Vênus de Willendorf está guardada no Museu de História Natural de Viena. Símbolo de adoração pré-histórica ou não, o suntuoso arranjo museológico que a acolheu parece uma capela: em meio a uma grande sala, com pé-direito altíssimo, ergue-se uma pequena “igrejinha” de madeira, com uma pesada cortina escura na única entrada. Lá dentro, com um quase nada de uma luz meio avermelhada, está a nossa pequena Vênus, de pé, para nossa admiração e adoração. Arqueólogos a encontraram e ela está em um museu de história natural, mas bem poderia estar em qualquer outro...

A questão aqui pode ser: olhamos para ela como uma peça de arte?

A Vênus, como alguma figura nas paredes das cavernas, poderia ser talvez o equivalente de uma imagem da revista Playboy para os homens de hoje.

Sandra M. Stroparoprofessora da UFPR

A nossa noção de arte muito provavelmente não existia no paleolítico superior, mas haveria alguma outra? — Longas discussões contemporâneas, dos desenhos elaborados até as marcas negativas de mãos nas cavernas, e até mesmo as estátuas cicládicas europeias ou os moais da ilha de Páscoa: aqueles homem estavam fazendo arte? Será que importa se a “Vênus de Willendorf” foi feita com uma concepção artística, religiosa ou erótica? Importa, se a achamos, hoje, extremamente bela?

A arte contemporânea não gera às vezes essa mesma confusão aos nossos olhos, leigos mas plenos de gostos e julgamentos? Muitos artistas recentes parecem ter inclusive sustentado sua obra sobre o fio fino desses julgamentos, num processo de desafio e provocação que surgiu principalmente com as vanguardas mas que perdura como estratégia estética e, ou, como não falar disso?, de mercado...

Não seria demais supor que esse pode ser o viés da obra de Jeff Koons, artista contemporâneo que pela primeira vez recebeu uma grande retrospectiva que já passou pelo Whitney Museum em Nova York, está em Paris, no Centre Pompidou ainda este mês e logo vai para o espetaculoso Guggenheim de Bilbao. Uma espécie de transformador do ready made, o artista trabalha desde sempre com várias bases e meios diferentes, da pintura à escultura, passando pela fotografia e pela “performance escultural botânica” e o objeto urbano.

Suas fotografias erótico-pornográficas com sua ex-mulher Cicciolina são tão ou até menos provocantes do que sua escultura em porcelana de Michael Jackson com seu macaco Bubbles, imortalizados em tons de branco e dourado, como um imenso bibelô pop de gosto duvidosíssimo. Mas o bibelô brega é mesmo mais provocante, porque ele ousou o que jamais outro havia ousado: algumas cópias em coleções particulares, outras em museus, vendidas a preço de grande arte contemporânea.

Em algumas das obras mais recentes, o alumínio policromo e o aço inoxidável, colorido e espelhado, dão corpo a brinquedos gigantes e formas que repetem as de balões laminados infantis, ou mesmo aquelas esculturas de bexiga que divertem as crianças em parques e aniversários. São esculturas que eternizam o descartável com tal segurança e presunção (aço inoxidável é uma espécie de oposto à borracha de bexiga, não?) que quando nos aproximamos daquelas superfícies espelhadas e percebemos nosso próprio rosto, ainda que distorcido, podemos nos deixar levar por um tipo de insight sobre o consumismo, o efêmero da nossa vida, o descartável, o dispensável e, como queria Leminski, o inutensílio: a arte.

E no meio da retrospectiva de Koons, de repente, ela aparece, alaranjada e gigante (mais de 2 metros de altura!), mas ainda reconhecível: a “Vênus de Willendorf”. Parte de uma grande coleção que ele intitulou “Antiquity”, ao lado de esculturas que reproduzem estátuas clássicas gregas, romanas ou renascentistas, a escultura “Balloon Venus” ali está, estranha e linda, com barriga e nádegas ainda maiores, espelhando também o nosso rosto, bem como toda a sala. Em entrevista, Koons afirmou ter feito uma alusão à “Vênus de Willendorf”. O quadrinho ao lado da escultura nos informa: “2008-2012. Aço inoxidável com polimento espelhado e verniz colorido transparente. 1 de 5 versões únicas. Coleção do artista”.

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