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Livro

Americanah

Chimamanda Ngozi Adichie. Companhia das Letras. 520 páginas. R$ 54. Romance.

Parte importante da nova geração internacional de ficcionistas, em particular dos que escrevem em língua inglesa, têm se proposto uma arriscada tarefa: usar a literatura como um instrumento de captura e registro fiel do mundo contemporâneo. Os problemas dessa tendência realista, que arrebata os grandes prêmios e frequenta as listas internacionais de best-sellers, são muitos. Para começar, o mundo não tem mais a mesma estabilidade dos tempos do velho realismo, surgido com a Revolução Industrial. Não vivemos mais em um mundo nítido – como nos tempos de Balzac, ou Stendhal. Nosso mundo pós-industrial é líquido (Bauman), fragmentado e disperso. Com isso, ele impõe aos escritores novos e complexos desafios. Mundo um tanto incompreensível, ele já não parece caber em uma narrativa coerente.

As ameaças impostas por esse projeto –apesar de suas evidentes vantagens comerciais – são muitas. A mais grave: o escritor corre o risco de se perder, para sempre, no lodaçal dos lugares comuns. É uma literatura que usa a língua não tanto como objeto de invenção, mas como meio de reprodução. Para esses escritores, não é a língua que produz a realidade. A ficção não passaria de uma máquina –espécie muito particular de arsenal técnico – que eles usam para fotografá-la. Pragmáticos e fascinados pela habilidade, esses escritores lutam para escrever com fluência, para construir diálogos confiáveis e são fascinados pela verossimilhança. Tudo para oferecer ao leitor a mais convincente ilusão de realidade.

A nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie resolveu assumir corajosamente todos esses riscos. Sua escolha se consagra em Americanah (Companhia das Letras, tradução de Julia Romeu), romance em que se esforça para construir um retrato meticuloso da vida dos imigrantes nigerianos no Ocidente, em particular nos Estados Unidos. Como pano de fundo, sustentando todo o relato, impõe-se a questão dolorosa do racismo. A protagonista, a nigeriana Ifemelu, se muda, nos anos 90, para os Estados Unidos. Deixa para trás uma Nigéria dominada pela ditadura e um amor de juventude, o jovem Obinze, que só quinze anos depois irá reencontrar. Narrado como uma história de amor, Americanah é, mais que isso, um romance a respeito do direito de existir.

Na América, hospedada com a tia Uju, Ifemelu entra em um estado de grande agitação. Sem conseguir dormir, vai à cozinha, onde se depara com uma barata gorda na parede. "Se estivesse em sua cozinha em Lagos, Ifemelu teria procurado uma vassoura para matá-la, mas deixou a barata americana em paz". Um pequeno incidente noturno aponta seu lugar de estrangeira. Mais que isso: de estranha, que nem uma barata se sente autorizada a matar. O inseto que tem à sua frente não lhe pertence, e por isso é intocável.

Começa a procurar emprego, mas se sente perdida. "O mundo estava envolto em gaze; Ifemelu podia ver a silhueta das coisas, mas nunca com clareza o suficiente, nunca o suficiente". A América não é apenas o estrangeiro, é também o estranho. Tia Uju, que sobrevive como médica residente, sugere que a sobrinha procure um emprego no McDonald's, ou no Burger King. Mas Ifemelu se sente em guerra com o mundo, "imaginando uma horda de pessoas sem rosto que estavam todas contra ela". Sente-se deslocada - não se reconhece.

Em casa, ao atender uma banal ligação de telemarketing, ela volta a se dar conta da transformação que experimenta. O vendedor elogia seu sotaque: "Você parece uma americana falando". Automaticamente, Ifemelu diz "obrigada". Logo depois, porém, ela se dá conta do que fez: transformou o elogio em "uma guirlanda que pôs em volta do próprio pescoço". Por que falar como uma americana seria um elogio?, Ifemelu se pergunta. Imigrar seria viver em um país estrangeiro, ou incorporar esse país estrangeiro? Começa a se dar conta de que assumira "um tom de voz e uma maneira de ser que não eram os seus". Assusta-se quando, ao receber pelo correio um cartão de crédito pré-aprovado, com seu nome escrito em itálico, sente-se menos invisível. Um paradoxo a aflige: será que ela só pode existir se deixar de existir?

Um dia, em uma feira, de mãos dadas com um namorado americano, Ifemelu é obrigada a ouvir de um vendedor de maçãs: "Já se perguntou por que ele gosta de você assim, com essa cara de selva?" O mais espantoso: o vendedor era, ele também, um negro. Isso a leva a concluir que, quando um africano se muda para a América, deixa de ser africano – e se torna um "negro". A origem cede lugar a um clichê. Uma mordaça? "Ela parou por um instante sem ter certeza se havia imaginado aquelas palavras". A realidade se torna inacreditável. Mais tarde, ao romper o namoro com Curt, leva um novo susto: em uma discussão, ele a chama de "vaca". Descobre que o namorado "havia se transformado em um homem que podia dizer 'vaca' de uma maneira tão fria". Em Lagos, mesmo nos momentos mais tensos, aquilo não seria possível. Durante as semanas seguintes, luta para voltar a ser a pessoa que era antes.

Quando resolve largar o trabalho para se dedicar a um blog e a dar palestras sobre o racismo, Ifemelu descobre, mais uma vez, que está dividida em duas. A mulher que dá palestras fala o que a plateia quer ouvir. Já a que escreve no blog simplesmente diz o que pensa. A cisão produz uma ferida interior. Enquanto isso, seu primeiro namorado, Obinze, tenta a vida em Londres. Em seu exílio, ele lê os jornais americanos, mas evita ler os ingleses, "porque havia cada vez mais artigos sobre imigração, que avivavam o pânico em seu peito". Também na Inglaterra, um nigeriano se sente deslocado de si mesmo. Ele se transforma em outro – ele é capturado numa imagem que não é sua. "O vento que soprava nas Ilhas Britânicas estava impregnado do cheiro do medo de quem pedia asilo, infectando a todos com o pânico de uma catástrofe iminente".

Com delicadeza e, sobretudo, com muito cuidado, Chimamanda escreve para tomar posse de uma realidade que a repele. O romance é inspirado em sua experiência pessoal de migrante. Hoje divide sua vida entre a América e a Nigéria. Esse aspecto confessional é, certamente, o segredo de seu sucesso.

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