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 | Ricardo Humberto/Especial para a Gazeta do Povo
| Foto: Ricardo Humberto/Especial para a Gazeta do Povo

A crônica de hoje só quer uma coisa. E se tiver sucesso, terá sido um evento grandioso na minha vida e, ouso dizer, na tua também.

A crônica de hoje só quer te fazer ouvir um negócio.

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E o negócio que a crônica de hoje quer te fazer ouvir é a Chaconne da segunda Partita pra violino solo, em ré menor (BWV1004) do velho Johann Sebastian Bach.

Acuma?

É. Dito assim parece pomposo.

E eu nem vou piorar muito as coisas falando do que eram partitas, o que são tonalidades, ou o que é aquele diacho daquele BWV. Vou só falar um pouquinho do que é uma Chaconne. Ou Ciaccona, em italiano, que foi como o velho Bach escreveu na partitura.

É uma dança, de origem espanhola (americana? o “chaco”?) que se baseia num sistema de variações. Ou seja, já de cara você apresenta um “tema”, que no caso dessa dança é uma sequência de acordes, e depois você “varia”, enfeita, muda, altera esse tema. Ciclicamente.

Como a base é só uma série de acordes, ela, aos nossos ouvidos, lembra bastante um improviso de jazz.

No caso desta chaconne, é um tema de meros quatro compassos, doze “tempos”, que vai ser variado nada menos que 64 vezes. E você nunca vai cansar. Vai por mim.

Porque além de tudo essa estrutura mais “simples” (na comparação com uma fuga, ou uma sonata) facilita a vida dos ouvintes menos “treinados”. A música fundamentalmente se repete o tempo todo. Diferente a cada vez.

Quer coisa mais jazzística?

Quer coisa mais barroca?

Se você aceitar dar uma conferida, o YouTube está cheio de versões. Eu, particularmente, recomendo a versão de Gidon Kremer.

Mas, pra você ter uma ideia, além de praticamente todo e qualquer violinista do mundo ter tocado essa peça que, quando foi composta, era julgada praticamente impossível tecnicamente, existem versões pra piano, piano só pra mão esquerda (feita por ninguém menos que Brahms), violão (Segovia), marimba, cello, orquestra (Stokowski). E vai…

A peça historicamente cria obcecados.

Como é que pode alguém ter criado tanta coisa, tão inventiva, pra um instrumento de quatro cordinhas, sem acompanhamento? Era o pasmo de Johannes Brahms.

Eu, recentemente, descobri que o violinista Joshua Bell, pra minha felicidade, concorda com o que pode ser a minha avaliação mais “polêmica”, de que a Chaconne deve ser simplesmente a maior realização do espírito humano.

Mole?

Ok. A Capela Sistina. A Nona Sinfonia. Guerra e Paz. Mas olha os tamanhos. E compare com a figura solitária da violinista Alina Ibragimova num palco com apenas um holofote, durante 14 minutos, diante de CINCO MIL pessoas no mais absoluto silêncio, nos BBC Proms desse ano.

A peça, partindo de recursos tão aparentemente limitados, é infinita. Ouça uma vez. Se deixe levar. Dance (eu danço quando estou sozinho) e perceba o quanto ela é autenticamente espanhola em inúmeros momentos. E o velho nunca pôs um pezinho fora da Alemanha.

Perceba os momentos deliciosos de tensão acumulada.

O humor. A celebração. O lirismo.

Sorria leve quando ela abandona temporariamente o Ré Menor e fica solar e Maior.

Salte. Chore. Ria.

Tem um mundo inteiro ali.

É uma das coisas mais lindas que você pode ouvir na vida.

Tente.

Preste atenção.

Porque sabe por que eu fico insistindo nesse projeto de te fazer ouvir? É porque o mundo precisa.

Porque as coisas podem se perder na correria. Na pressa. Na vida.

Quer ver?

O mesmo Joshua Bell, um dos maiores violinistas de todos os tempos, em 2007 se pôs, anônimo, tocando a Chaconne numa estação de metrô em Washington D.C. Era parte de um experimento. Tinha uma câmera escondida.

E as imagens resultantes são das coisas mais tristonhas da internet. Dezenas, talvez centenas de pessoas passando direto por aquilo. Sem se deter. (Se não me engano ele tocou a peça duas vezes… meia horinha.)

Às vezes a gente precisa parar.

E essa pode ser uma nobre função pra uma crônica domingueira. Te dar esse presente.

Pare diante da Chaconne.

Se eleve.

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