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 | Ricardo Humberto/Especial para a Gazeta do Povo
| Foto: Ricardo Humberto/Especial para a Gazeta do Povo

Eu e a Sandra compramos um liquidificador.

Chique. Caro. Daqueles americanos retrô que pesam setecentos quilos e parecem ter saído direto da cozinha da tua avó.

Feito pra durar etc. Sólido.

Mal acabou a garantia o treco pifou. Tipo morreu mesmo. Apagou.

Assistência técnica. Conserto. Volta pra casa.

Usa uma vez. Morre. Pifa.

Assistência técnica. Conserto, de graça, uma semana pra analisar a parada toda. Volta pra casa.

Usa duas vezes. Morre. Pifado.

Repete-se mais uma vez. Morre.

Outra assistência, mais uma semana. Laudo: tem dois botões quebrados. Tipo o plastiquinho embaixo do botão, que empurra o sei lá o quê que aciona o sei mais lá qual. Tem que trocar.

Pegadinha? Eles não fabricam botões solo. Tem que trocar o “painel de comando” inteiro.

(O que curiosamente lembra uma vez em que a gente teve que trocar de aparelho de DVD porque o controle remoto do antigo não funcionava mais…)

Trezentão.

Volta pra casa. Esperando o segundo uso…

Por que falar disso aqui?

E o que tem o Montaigne lá em cima?

Vejamos.

Os primeiros textos do primeiro livro dos Ensaios de Montaigne parecem quase monótonos. São uma sucessão de diante de tal problema, pode-se fazer A e B; nesses casos aqui, A deu certo; nesses outros, deu errado; nesses terceiros B deu certo; e errado nos últimos. Até você sacar o que ele quer.

E o que ele quer é ilustrar o lema cético que ele estimava tanto que mandou gravar num medalhão que usava sem parar. Epokhé, em grego: suspendo meu julgamento. Ou seja: não sei, não vou saber, tenho certo desprezo por quem acha que sabe.

Ou, como eu gosto de dizer pros alunos em aula de dialetação: vareia.

Ou seja, a ideia muito profunda de que no que se refere a certos tipos de experiência (ele não está falando do discurso científico aqui, mas de história, filosofia, ética) a noção bem estabelecida de que nós podemos nos basear em precedentes pra determinar a ação correta simplesmente não funciona.

Porque depende.

Porque vareia.

Porque é melhor você assumir de vez que não sabe.

Ok, mas e o liquidificador agora?

É que tem o seguinte. Depois de uma experiência dessas, a gente pode se ver tentado a chamar de cética, no sentido raso, a conclusão inevitável: pô, que que adianta comprar o produto “melhor” se mesmo ele pode ir pro vinagre em um ano?

Mas que, no fundo, a coisa cética, no sentido da mais que respeitável corrente filosófica que o velho Montaigne resumia como ninguém, é pensar mais pra frente. Pensar pro caso hipotético futuro. E passado.

Por que o que me interessa aqui é pensar o que teria acontecido se, na loja, a gente estivesse com pouca grana, ou com menos disposição de comprar um negócio legal pra nossa casa, e tivesse decidido comprar um liquidificador baratinho, depois de ter visto o carão ali do lado. E se o baratinho quebrasse depois de um ano? Virasse lixo?

Quem é que ia poder resistir à tentação de se martirizar pensado, pô, era só eu não ter sido pão-duro; quem mandou querer ficar com o fuleiro: economizei na hora e agora vou gastar dobrado com concerto e tal?

Quem?

Mas se a estória do liquidificador de Montaigne tem algo a ensinar, é que tanto A quanto B podem dar certo e podem dar merda.

Se a estória do liquidificador de Montaigne tem algo a dizer, e eu acho que tem, viu?, é que às vezes o eletrodoméstico caro também quebra.

E isso é pra vida.

Pra gente parar até de sonhar com o que não pode ter.

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