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 | Osvalter Urbinati
| Foto: Osvalter Urbinati

Moro em uma das ruas mais curtas do São Francisco. É estreita também. E de paralelepípedos. Começa no rabicho da feirinha do Largo, às vistas da Mesquita. Termina em uma zona cafona que cheira a talco. Todos os dias, faça chuva, sol ou neve, usuários de crack se amontoam em frente de uma mansão misteriosa que ostenta sequoias e esconde-se do mundo com a ajuda de um muro medieval e de múltiplas portas de ferro.

Descrito por Bill Clegg no radical livro “Retrato de um Viciado Enquanto Jovem” (Companhia das Letras) como “um choque elétrico que percorre todos os nervos do seu corpo”, o crack, de certa forma, une. Porque ali dá de tudo: piás curiosos, rapazes com pastas nas mãos e roupa de ir trabalhar, loucos profissionais, usuários veteranos (estes já transformados em algum remedo de gente; parecem vagar como almas no limbo, olhando o chão como se fosse a própria eternidade). Quando o dia está bonito, a coisa bomba. Tem até colchãozinho.

Poucas vezes esse pessoal me incomodou. Mas os vi em pé-de-guerra com transeuntes que ignoraram os pedidos por uns trocados. Dou bom dia e boa noite. Não sinto saudades, embora quase criemos uma relação pseudoafetiva porque, ora, nos encontramos todos os dias. Menos quando tem música.

A Sociedade Operária Beneficente 13 de Maio é minha vizinha de frente. Há 127 anos, dedica-se a salvaguardar a memória dos negros. E tem na figura do presidente Álvaro da Silva um resumo da força e da sensibilidade dessa gente – volta e meia cruzo com o elegante sujeito, ora pitando um cigarro, ora rindo porque uma criança está em seu cangote, esperneando feliz. Netinha, talvez.

De alguns anos para cá, eventos musicais na terceira agremiação negra mais antiga do país reúnem pessoas de diferentes tribos (até hipsters!). O recifense Tibério Azul, a gaúcha Apanhador Só, a paulista Wry, e muitas bandas curitibanas como Uh La La! e Audac já fizeram barulho ali, espantando para algum outro lugar os drogaditos todos (este zanzar de doentes que atiçam mais a segurança pública do que a saúde é mais um desses provisórios que se tornam permanentes).

Domingo é diferente. Quando é caso de plantão no jornal, retorno depois das 10 da noite. No caminho, figas. Na cabeça, um mantra arrasta-pé: “Por favor, tenha forró, por favor, tenha forró, por favor...” Porque, quando a banda Areia Branca toca “Parabolicamará”, há gente por toda a rua. Bicicletas também. Conversa fiada distribuída em rodinhas, mesmo no breu em frente à mansão tétrica. Nenhum perigo, exceto pelas calçadas traiçoeiras.

Espaços culturais têm esse poder espetacular e subaproveitado de modificar o que está ao redor. De forma espontânea e preventiva, sem cães farejadores ou repressão policial. Fazem de pedaços da cidade, amigos confiáveis. As ruas ganham olhos quando têm gente.

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