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Livro

O Canário e o Manequim

Walmir Ayala, Nova Fronteira, 48 págs., R$ 34,90. Infantojuvenil.

Em uma sociedade que se caracteriza pela repetição, pelas normas de conduta, pela regulação dos comportamentos e pelos receituários ("como fazer"), a literatura – estrada de contramão, na qual os sinais estão contorcidos – se interessa, ao contrário, pelo desvio, pela inquietação e pelo improvável. Apresentadas aos livros desde cedo, já as crianças podem provar de seu gosto estranho, mas estimulante. Nada mal, por isso, reencontrar-se com um livro da qualidade de O Canário e o Manequim (Nova Fronteira, com ilustrações de Elma), que o poeta, romancista e crítico de arte Walmir Ayala (1933-1991) nos deixou.

Detenho-me em "A Onça com Asas", breve narrativa que começa na página 29. A história de um bicho que distorce a aparência da selva, levando-a a abandonar a letargia para interrogar a si mesma. "A notícia explodiu na floresta: nasceu uma onça com asas", Walmir começa, conduzindo-nos direto – como um guia traiçoeiro – ao lugar escorregadio (pântano, mas infinito) no qual a literatura nasce. Valores antes consagrados, como os de "natureza", de "sensato" e de "prático", perdem interesse e utilidade.

O coelho, sempre cheio de suspeitas, é o primeiro a protestar: "Onça de asas não existe! Nem esta nasceu tampouco, pois já é grande, adulta, velha mesma". Deparou com o estranho, já o enterra, como traste. Onças devem ser agressivas: a ideia de uma onça lírica lhe é insuportável. Também o lirismo – vocábulo surgido no Romantismo, para descrever a poesia individualista e emocional do século 19 – aparece para colocar em questão toda uma ordenação e hierarquia anteriores. E assim se mantém: ainda hoje, passados o modernismo, o concretismo, a praxis e as vanguardas, ele continua a provocar, muitas vezes, escândalo, ou indignação.

Útil pensar no lirismo – sempre torto e fonte de grandes contorções íntimas – no mês em que se comemora o centenário do poeta Vinicius de Moraes (1913-1980). Não é por outro motivo que a figura do poeta, ainda hoje, é achatada pela alcunha, amorosa, mas também tenebrosa, do "poetinha". Nascido em uma geração de gênios – Bandeira, Drummond, Cabral, Cecília, entre tantos –, também ele foi uma espécie de "onça com asas". Figura paradoxal, que ainda hoje interroga, com sua leveza, nossos melhores poetas. Figura quase religiosa – e é útil pensar aqui que, entre os gregos, a lírica se associava, primeiramente, às religiões.

Assim, ninguém se atreve a se aproximar da onça torta que, sem amigos (lírica), se distrai regando flores. Ela evoca ainda a figura lendária da Moura Torta – que, nas histórias infantis, provoca desconfiança e repulsa por sua simples aparência. Ao contrário do coelho, porém, o pardal resolve perguntar à onça onde ela nasceu. (As origens, os laços sanguíneos e as hierarquias sempre nos acalmam.) "Não sei. Apareci. Não conheço minha família". Em palavras mais diretas: ela foi inventada, é filha de si mesma. É pura ficção, que não precisa da hereditariedade, tampouco da trama das influências, para chegar a ser quem é. Simplesmente é – e isso deveria bastar, mas para os homens práticos de hoje não basta. O pardal relata que a encontrou em uma casa muito simpática, mas o coelho acha que lhe falta capacidade para julgar. Já os outros bichos, aos poucos, cedem às ideias da ave, já de alguma forma embriagados pela emoção lírica.

Um dia, das mãos de um emissário urubu, a onça recebe uma carta das "onças reais", de sangue azul – aquelas que cumprem, ponto a ponto, o receituário da espécie. Também elas consideram uma "traição à raça" que a onça lírica, em vez de correr como suas irmãs, prefira a leveza, prefira o estranho, prefira voar. Ao ler a carta, ela chora, ciente de sua solidão. Desesperada, fora de si, "a onça então desabotoou o seu paletó de pintas e, ao retirá-lo, caíram também as asas". Vibra o coelho: "Era uma falsa. Peguei-a em flagrante!" Anuncia a sua verdade: o que a onça deseja mesmo é devorar todos os filhos dos animais, e por isso se fantasiou. Que suas asas líricas não passam de miseráveis armas secretas. E lhe nega, assim, o direito de inventar-se.

A onça não suporta a ira do coelho e voa sobre ele. "Eu não queria sacrificar você. Mas não vejo outra solução". Contrariando a si mesma, decide matá-lo. Mas, antes disso, resolve contar sua história. Desde pequena, não sabia dizer por que, preferia brincar com as borboletas e bailar nos galhos com os macacos. Era a vergonha da família. Trazia aquela contorção no sangue. "Cheguei aqui", ela diz ao coelho, "e só você não me aceitou". A carta das onças nobres exigia que ela, em castigo por seu desvio, lhes enviasse uma presa. A vítima só pode ser o coelho, ela conclui, aflita.

Resolve, porém, em vez de matá-lo, enviá-lo às "onças nobres", amarrado "como um pacote de festas". Abdica da justiça pelas próprias mãos (patas) e leva o coelho ao julgamento de suas superiores. Sem perder a delicadeza, envolve-o em uma fita azul e ainda coloca uma rosa no laço. O dia seguinte é de festas. "A onça, livre e lírica, continua com suas rodas de chá e suas asas que nem tira mais para dormir". Apostou tudo em sua diferença – e conquistou a floresta com ela. Já o destino funesto do coelho – resultado de sua intolerância – permanece oculto.

Há uma moral não tão secreta na história de Walmir Ayala. Mas também a constatação de que o lirismo nem sempre é suportável. Voar – ao contrário do que pensam aqueles que observam o voo desde o chão – dói. Quando voa, a onça lírica deixa de ser objeto – da tradição, da norma, da verdade – para se tornar sujeito. Ela age, assim, como os artistas, que só conseguem chegar ao que são depois de renegar, como ênfase, mas com dor, tudo o que os precede.

No lirismo – arte do Eu – os mundos externo e interno entram em uma frenética comunicação. Já não existem limites entre eles. O mundo não é só o que é, mas também aquilo em que o poeta o transforma. Ao retorcer a realidade, Walmir Ayala dela toma posse. Ele a abraça e entrega ao mundo o que tem de melhor.

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