• Carregando...
 |

Romances

O Obsceno Pássaro da Noite

José Donoso. Tradução de Heloísa Jahn. Benvirá, 488 págs., R$ 49,90.

O Lugar sem Limites

José Donoso. Tradução de Heloísa Jahn. Cosac Naify, 160 págs., R$ 29,90.

Em uma versão perversa da homeopatia, existe hoje a tendência de combater o mal com o próprio mal. Se o mundo está infestado de imagens, devemos aceitar que elas nos engolfem e gozar com isso. Se a zoeira das ruas se torna insuportável, devemos elevá-la ao grau extremo, e nos habituar ao inaceitável. Se a verdade se revela precária, façamos desta insuficiência o nosso manto e cultivemos a mentira de que somos verdadeiros e puros. Lugar dos excessos, dos dejetos mentais, do falatório enlouquecedor, das afirmações peremptórias, nosso tempo se ilude acreditando que combate a desgraça, quando se torna a origem da própria desgraça. Recuemos quatro décadas, até o ano de 1970, quando o escritor chileno José Donoso (1924-1996) lançou seu mais importante romance, O Obsceno Pássaro da Noite (editora Benvirá, tradução de Heloísa Jahn). Está quase tudo ali. A estratégia de disfarçar a desgraça (a feiúra, por exemplo) com o recurso fraudulento das aparências. O empenho em acreditar que nada mais presta e, nesse caso, só nos restaria, de direito, roer calmamente os ossos. A decisão vertiginosa de acobertar o mal com o próprio mal: combater a guerra com a guerra, enfrentar o cinismo com mais cinismo, combater a mentira com o exercício da mentira.

Volto, para não me perder, ao romance de Donoso. A luxuosa árvore genealógica da família Azocotía – sob o comando do poderoso Jerónimo – está acostumada a gerar homens de almas nobres: políticos probos, bispos piedosos, mulheres de beleza impecável, militares valentes e até uma beata. Foi com um tremor que o patriarca encarou pela primeira vez, aconchegado sob as cortinas de seu berço, o primogênito Boy. "Aquele repugnante corpo nodoso retorcendo-se sobre sua corcova, aquele rosto aberto num vinco brutal onde lábio, palato e narizes desnudavam a obscenidade dos ossos e tecidos numa incongruência de traços avermelhados...". O filho, um destroçado Jerónimo pensa, só pode ser a desgraça em pessoa.

"Era a confusão, a desordem, uma forma diferente, mas pior de morte", resume. Teve ganas de matar o bebê, mas se controlou. Mais que a impressão de desgraça (na verdade, medo dela), o pobre menino trazia, no corpo, sua origem. Era um desafio a seu poder patriarcal, de vencedor implacável, de homem superior. Era a derrota encarnada, incompatível com as mais elementares (e rígidas) ideias de Jerónimo a respeito do que fosse o humano. Ocorre-me que o menino de Donoso lembra os "esboços fisiognomônicos" de Leonardo Da Vinci, guardados no Museu do Louvre. Os desenhos em espelho de Della Porta, ou os esboços ameaçadores de Charles Le Brun. Evocava uma galeria de aberrações, das quais a arte, em vez de se desviar ou de mascarar, sempre preferiu arrancar um sentido.

Jerónimo não matou seu filho. Em vez disso, enclausurou-o em La Riconada, uma antiga casa de exercícios espirituais que o patriarca transforma na simulação de um mundo insólito e grotesco, espécie de "parque temático" do horror, habitado por figuras devastadas pela dor. Mudinho, como o garoto é conhecido, passa a viver em um mundo de feiúra, de pura repugnância, no qual a beleza é banida como uma ameaça. Como companhia, o pai lhe escolhe o doutor Crisófolo Aazula, com seu único olho no meio da testa. A mulher mais gorda do mundo, conhecida apenas como Miss Dolly. Berta que, devido às pernas adormecidas, se arrasta pelo chão imitando as serpentes. Uma anã com cara de cachorro. Figuras, enfim, que possam alimentar no menino a ilusão de que ele é só "mais um", em um mundo destituído de beleza e de sentido.

O desejo louco de combater a dor com a própria dor está no centro do romance de Donoso. Nos porões do mundo falso em que o menino Boy é lançado, as mulheres gostam de narrar uma antiga lenda que o sintetiza. Um cacique tem nove filhos homens e uma única filha mulher. Viúvo, a garota é cuidada por "uma velha de mãos deformadas pelas verrugas". Compartilham, no mesmo quarto, os segredos do feminino. Tudo vai bem até o dia em que surgem boatos envolvendo a velha e a menina. "O cavalariço deve ter comentado com o queijeiro ou o queijeiro com o cavalariço ou com o hortelão ou com a mulher ou com a sobrinha do ferreiro", descreve Donoso. À noite, grupos de peões cochicham acocorados ao lado das fogueiras. O boato se alastra. "Diziam, diziam que alguém dizia ou que alguém ouvira alguém dizer sabe lá onde". Palavras já não valem mais nada além das mentiras que distribuem.

Logo se espalha a história de que um "chonchón" – ave fantástica e agourenta do folclore chileno, com uma monstruosa cabeça humana – sobrevoa a noite do vilarejo. O boato se alarga: agora se diz que a menina (e também sua ama seca) é uma bruxa. Os irmãos resistem a acreditar – até que o "choncón", perseguido por uma cadela amarela, é visto. Matam a cadela: ela só pode ser a dama de companhia. A menina ainda tenta salvá-la: "Ama. Minha ama querida! Não a matem, papai". Seu clamor é inútil. A mulher morre no lugar da garota que, ato contínuo, é "purificada". A mentira, que produziu a mentira, só se mascara com a simulação da verdade.

Donoso é um mestre no desvendamento destes estados limítrofes, em que o mundo expõe suas desagradáveis entranhas. Dele recebemos, ainda, O Lugar sem Limites (Cosac Naify, tradução de Heloísa Jahn), novela de 1965. Trata-se da história de Manuela, um travesti que vive em um prostíbulo no interior do Chile, fazendo da simulação a sua salvação. Em um mundo falsificado, só a mentira pode enfrentar a mentira. Ao simular que é uma mulher – carregando de fato, em seu corpo de homem, o desejo feminino –, Manuela dá ao mundo o que ele lhe pede: a monstruosidade. Um homem não pode desejar outro homem, a não ser que seja um monstro, pensam. Também a filha de Jerónimo só pode se salvar do mal se este for localizado em outro corpo, que não o dela. Previu Donoso o recurso das duplicações, dos disfarces e do teatro mentiroso em que nos amparamos. Em que nos perdemos. Foi um profeta da desgraça, mostrando-nos que sua origem está nela mesma, e não em algum Mal longínquo que se abata sobre nós.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]