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Livro

Minha Vida Sem Banho

Bernardo Ajzenberg. Rocco. R$ 24,50.

Um sentimento de monotonia — de repetição perpétua, de que nada mais vai acontecer — domina o mundo contemporâneo. É pelo menos uma das marcas mais fortes da vida no Ocidente. Diluído em redes virtuais e identidades fantasmas, o cotidiano perde toda vibração. Apesar dos benefícios que nos trouxe, a tecnologia conduziu o homem a um grande nevoeiro. Em choque com a interminável malha virtual e seu falatório sem fim, as vozes individuais perdem a eficácia, reduzindo-se a lamentos e pantomimas. É nesse mundo sem calor e sem surpresas — onde a própria violência e o ódio se tornam previsíveis — que vive Célio Waisman, o protagonista de Minha Vida Sem Banho, novo romance de Bernardo Ajzenberg (Rocco).

Engolfados pelo ritmo alucinante do novo milênio, já não nos sobra tempo para os projetos individuais. Não conseguimos mais afirmar posição — que ainda nos pertence — de Sujeitos, e não de Objetos. Estamos presos a uma armadilha tautológica, resumida na epígrafe que Ajzenberg toma de empréstimo do escritor húngaro Imre Kertész: "Por que me sinto tão perdido? Obviamente porque estou perdido". Em busca de um fio de sentido a que possa se apegar, Célio, motivado por um curto-circuito na resistência do boiler de sua casa, que em pleno inverno o condena aos banhos frios, toma uma inusitada decisão: viver uma "vida sem banho". O desprezo pela higiene pessoal provoca um corte abrupto em sua rotina. A decisão se transforma em um ralo, pelo qual escorrem todos os antigos vícios e automatismos, obrigando-o a se reinventar.

Uma simples peça deslocada de seu lugar habitual leva todo o edifício existencial a desmanchar-se. Somos frágeis e desprotegidos. Qualquer mínima alteração de expectativas nos sacode e arrasta. É o que acontece com Célio, que transforma a ausência do banho em um projeto de salvação. Trabalha em uma ONG, que tem por objetivo "convencer as pessoas a mudarem seus hábitos cotidianos de modo a mitigar riscos". Agora, porém, deve aplicar a tese em si mesmo — ele se torna seu próprio Objeto. Recordo, aqui, de um ensaio de Juan Jose Saer sobre a obra de William Faulkner, em que o escritor argentino nos adverte: "Os melhores livros de Faulkner nos dão essa dupla lição, que é a de toda grande literatura: fidelidade a uma visão pessoal e exploração constante da forma". Parece estar falando de Célio que, sem ser um escritor, mas apenas um jovem idealista e perdido, descobre, de repente, que necessita de um projeto íntimo, de algo que seja apenas seu para, enfim, ter a chance de existir.

Prossigo com a leitura de Saer: "Como uma casa que se levanta onde ali antes não havia nada, o olho e a mente devem acostumar-se à presença desse objeto novo que ninguém esperava encontrar". Não é preciso ser um grande artista, basta ser um homem insatisfeito. Apesar de seus aspectos risíveis, e dos inevitáveis problemas práticos que sua decisão desencadeia, o projeto da "vida sem banho" revira a existência do protagonista. Em uma temporada de trabalho em Manaus, sua namorada, Débora, lhe envia mensagens perplexas. Volto ainda a Saer: "Pode-se dizer que essa incompreensão é quase a norma cada vez que uma grande obra literária aparece". A pequena obra de Célio Waisman — manifesta em odores estranhos que ele luta para controlar — provoca o mesmo sentimento de ignorância. O que dizer de um homem que, de repente, tomou uma decisão tão estúpida, mas, ao mesmo tempo, tão provocativa?

Em torno da pequena revolução de Célio, o romance de Ajzenberg costura uma longa série de histórias, elas também carregadas de espanto e de rupturas. Três gerações se misturam em relatos que evocam a fuga do nazismo, a luta contra a ditadura militar e a esperança de sobreviver ainda como um Sujeito em um mundo, o contemporâneo, em que tudo tende para a desertificação. Três vozes — as de Célio, de Débora e do amigo Marcos — se trançam na esperança de dar conta de um cenário que os enquadra, ostensivamente, na mais absoluta solidão. Muitos impasses devem ser enfrentados. Em dado momento, o protagonista tenta convencer um estagiário, Agnelo, a trocar de desodorante. O problema é que Agnelo não usa desodorante, o que assinala um limite: aquele que nos obriga a ser, sem lamúrias, e simplesmente, o que somos.

Também a mãe, Flora, não sustentou a relação com o marido, Wilson. "É provável que minha mãe tenha decidido se separar dele por causa disso; cansou-se da incapacidade do marido de encarar a realidade". Mas como olhar de frente uma realidade escorregadia, que se multiplica aceleradamente e que nos confunde? Só resta a Célio sustentar seu projeto de uma vida sem banho, que ele encara como "uma decisão verdadeiramente ímpar, autoral". Afastando-se dos banhos, o protagonista enfrentará muitas dificuldades práticas, mas será autor de si mesmo. Não quer repetir o destino do pai que, em um almoço de família, lhe confessa: "Sabe o que é chegar aos 54 anos com a sensação de sempre ter sido um impostor?"

Com sua metamorfose pessoal, Célio imita os grandes escritores, que se caracterizam pelo nomadismo. Mas não precisa fazer como alguns poetas — como Rilke, por exemplo —, de quem o filósofo Rafael Argullol diz: "É um expoente, particularmente explícito, do escritor-viajante, perfilado desde o Romantismo". Não precisa mover-se fisicamente — não é necessário mudar de cidade (Débora em Manaus), ou viajar. Basta realizar uma pequena incisão ali onde reinava a segurança e seu mais perfeito correlato, a apatia. Um breve talho, na aparência banal, é capaz de virar pelo avesso uma existência. Torna-se um duto através do qual sangram a inércia e a ausência de si.

Débora observa a metamorfose do amado com suspeita. "No fundo você está aprendendo a se enganar melhor", diz. Apesar de recusar o pessimismo do pai, o protagonista admite seu próprio desencanto. Vive em um mundo dominado pela traição, pela vaidade, pela camuflagem, pela impostura. Esse nosso mundo que, explodindo — como uma rede imensa que arrebenta — se banaliza e se esvazia. Mundo ligeiro e superficial, no qual um gesto mais profundo — ainda que irracional e incompreensível — pode, como um corte sangrento, produzir inesperadas consequências.

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