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Mario Balotelli, o jogador italiano de origem ganesa que foi alvo de preconceito de torcedores. | Toru Hanai/Reuters
Mario Balotelli, o jogador italiano de origem ganesa que foi alvo de preconceito de torcedores.| Foto: Toru Hanai/Reuters

Paralelamente ao despontar do futebol surgiram dois conceitos que teriam grande importância no posterior desenvolvimento daquele esporte, os de comunitarismo e nacionalismo. Se no Ocidente a noção de comunidade está presente em Aristóteles e na Bíblia e difunde-se a partir da segunda metade do século 11, foi com a Antropologia de fins do século 19 que ela passou a ser definida e estudada. A de nação, “comunidade imaginada”, de acordo com Benedict Anderson, desenvolve-se entre fins do século 18 e princípios do 20 com o progresso da imprensa, por ser uma construção cultural que utiliza a herança histórica para criar uma nova cultura, oficial e homogeneizante.

Imigração, a bola da vez

Futebol é uma possível ilha de tolerância no debate público sobre imigrantes em território europeu por ser capaz de estapear o nacionalismo – esse combustível da discriminação – com a presença maciça e fundamental de jogadores estrangeiros ou naturalizados nos elencos de clubes e seleções

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Justamente porque o nacionalismo, diz Mario Vargas Llosa, “não é uma doutrina política e sim uma ideologia e está mais próximo do ato de fé em que se fundam as religiões do que da racionalidade que é a essência dos debates da cultura democrática” (“El País”, 22/9/2013), ele pôde ser absorvido pelo mundo do futebol, com as torcidas passando a se autodenominarem nações (“nação rubro-negra”, “nação tricolor”, “o Porto é uma nação” etc.). Algumas vezes o nacionalismo futebolístico ajudou a construir ou consolidar o nacionalismo tout court. Como percebeu Eric Hobsbawn, uma comunidade imaginada de milhões de anônimos parece mais real quando sintetizada em uma equipe de 11 pessoas bem identificadas, por meio da qual “o indivíduo, mesmo aquele que apenas aplaude, torna-se, ele próprio, um símbolo da sua nação”.

Mesmo que, como a história dos dois últimos séculos comprova, uma comunidade imaginada tenha tanto ou mais força que comunidades concretas, em função das várias utilizações catastróficas desse imaginário ele foi se esgarçando. É verdade que a Copa do Mundo, que na origem pretendia desviar o sentimento nacional dos campos de batalha para os campos esportivos, tornou-se com o tempo um terreno para expressões do nacionalismo. Aos poucos, porém, ela vai sendo abalada pela globalização, pela excessiva mercantilização, pela crescente perda de respeitabilidade da FIFA. É inegável que a competição ainda desperta muito interesse – estudo do Banco Central Europeu, examinando a evolução dos pregões da Bolsa de Valores em 15 países durante a Copa do Mundo de 2010, mostrou que, quando uma seleção estava em campo, naquele país os negócios caíram 45% e os volumes negociados, 55% – contudo não um interesse maior que uma disputa entre comunidades clubísticas como a Liga dos Campeões. A final desta em 2010 foi transmitida para 236 países; a final da Copa do Mundo, um mês depois, para 204.

O nacionalismo futebolístico tem recuado à medida que cresce a percepção de que a emoção e a mobilização cotidianas estão nas comunidades mais do que no denominador comum a elas que é a nação. O público e os jogadores vivenciam as partidas entre seleções como feriados nacionais: mais do que sentimento há nelas uma quebra de rotina, uma festa. Em países de fraco sentimento nacional, como o Brasil, as partidas da seleção não ocultam o pertencimento dos torcedores às suas comunidades. Vários deles vestem camisa do clube, agitam sua bandeira, apoiam mais seus jogadores que os demais.

Se aceitarmos a hipótese de Pierre Clastres, para quem a guerra é recurso típico de comunidades tribais que objetivam a manutenção da autonomia e a homogeneidade interna, não fica difícil entender por que nos primeiros tempos do futebol cada cidade criou um clube para se firmar diante das cidades vizinhas. Este processo está atestado já na pré-história do esporte, com a soule da França medieval, jogo violento que frequentemente provocava ferimentos sérios em seus participantes, tendo sido proibido pelo rei em 1319 e depois em 1369, sem desaparecer. Aquele jogo, diz um texto de 1374, era confronto “de aldeia contra aldeia”.

Por serem mais óbvios, por decorrerem de um acidente de nascimento, os laços nacionais são também mais frágeis.

Com efeito, identidade não é tanto algo em si mas para si, algo que se constrói contra o outro e para fazer face ao outro. Foi o que se deu quando, em 1908, três rapazes paulistas mudaram-se para Porto Alegre e quiseram ingressar no Grêmio Porto Alegrense para jogar futebol. Recusados por serem imigrantes, gente sem referência na cidade, resolveram no ano seguinte fundar um clube, o Internacional. Quer dizer, uma comunidade fechada gerou como reação outra comunidade, que congregaria todos os excluídos, inclusive negros a partir de fins dos anos 1930 (embora um primeiro tenha ingressado já em 1925). Negros que só seriam aceitos no Grêmio a partir de 1952. Os perfis opostos das duas comunidades geraram conflitos desde aqueles princípios. Na segunda partida entre elas, em 1910, já ocorreu o primeiro sururu. Na 11.ª, em agosto de 1918, os jogadores do Inter brigaram com os torcedores do Grêmio, houve uma centena de feridos, um jogador gremista esfaqueou um colega rival.

O caso gaúcho não é exceção: geralmente as rivalidades são criadas e alimentadas pela proximidade, pelo contato constante que se dá, forçosamente, mais com o clube de outra parte da mesma cidade ou de cidade próxima. Dito de outra forma, mais em ambiente comunitarista que nacionalista. Na Europa, por decorrência da longa história de rivalidade entre as nações, as instâncias comunitária e nacional se sobrepõem. Os clubes colocam seu objetivo máximo na competição continental, maneira de se afirmar a um só tempo contra os desafetos locais e internacionais.

A popularidade do futebol oscila entre o peso dos nacionalismos nas Copas do Mundo e o prestígio dos comunitarismos clubísticos. Os grandes vão muito além de seus limites geográficos e sociais tradicionais, tendo seguidores e torcidas organizadas em todo país ou mesmo em todo mundo (o Barcelona, por exemplo, conta com 114 fora da Espanha). Clubes pequenos confundem-se às vezes com o local de origem: na Alemanha, a cidade de Hoffenheim tem 36 mil habitantes e seu clube recebe em casa a média de quase 26 mil torcedores; na França, o clube da pequena Guincamp, de apenas 7.280 habitantes, em 2013-2014 vendeu 9.780 carnês de entradas para a temporada.

Por serem mais óbvios, por decorrerem de um acidente de nascimento, os laços nacionais são também mais frágeis. Os comunitários são mais sólidos, resultam da escolha de apoiar determinado clube. Claro que falar em comunidade não significa atribuir ao grupo uma homogeneidade que não existe nem no plano histórico, nem no sociológico, nem mesmo no linguístico (a consagrada expressão sprachgemeinschaft, “comunidade linguística”, não encobre a diversidade de níveis dos falares). Todo indivíduo habitualmente pertence a várias comunidades ao mesmo tempo, geográfica, profissional, política, religiosa, sexual, etária etc. Essa diversidade no interior de cada comunidade do futebol encontra um denominador comum na história do clube e nos seus grandes símbolos humanos (jogadores, técnicos e dirigentes emblemáticos), abstratos (camisa, escudo, hino) e físicos (estádio).

Se as disputas futebolísticas entre nações fazem reemergir antigas rivalidades esportivas e sobretudo políticas, é inegável que seu poder de atração recuou diante de competições intercomunitárias envolvendo times que são a própria negação das nacionalidades e, ao mesmo tempo, a afirmação do poder das grandes comunidades em reunir bons jogadores de todas as procedências.

Hilário Franco Júnior, professor aposentado da USP, é autor de “A dança dos deuses: futebol, sociedade, cultura” (Companhia das Letras, 2007). Este texto é uma versão editada de um dos ensaios de livro inédito do autor a ser publicado pela mesma editora.
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