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Obra Vista da Vila de Itu, de  Jean-Baptiste Debret: artista registrou o que encantava os olhos europeus pela novidade e exotismo | Reprodução
Obra Vista da Vila de Itu, de Jean-Baptiste Debret: artista registrou o que encantava os olhos europeus pela novidade e exotismo| Foto: Reprodução
  • Tropeiros Pobres de São Paulo: retratos precisos do passado brasileiro também revelam muito de crítica social

Quem já sentou em um banco de escola no Brasil, quase certamente já viu alguma imagem do francês Jean-Baptiste Debret, presença obrigatória nos livros didáticos de história. A exposição Debret – Viagem ao Sul do Brasil, em cartaz na Caixa Cultural Curitiba, traz ao público numerosas aquarelas originais do artista francês, integrante da Missão Artística Francesa, iniciativa de Joachim Lebreton que, em 1815, aportou no Brasil com o objetivo de criar uma escola de belas-artes. A mostra, que se encerra nos próximos dias, é uma oportunidade imperdível de conhecer mais sobre a obra de Debret e sobre nosso próprio país.Jean-Baptiste Debret era pa­­rente e discípulo do pintor Jacques-Louis David, principal artista do estilo neoclássico, que en­­carnava os ideais éticos, históricos e democráticos da Revolução Francesa. Debret encontrou no Brasil uma realidade que desafiava as aspirações humanistas da Revolução: a escravidão e a presença de uma corte decadente, transplantada às pressas para o mundo colonial, entravam em franca contradição com uma arte que pretendia revelar, através da representação histórica, os valores morais que embasavam a ação política no presente. A sua obra é o resultado visível de um embate entre os ideais neoclássicos e a realidade nacional e, neste sentido, é o sinal de uma cultura que, desde os primórdios, se caracterizou pela contradição e pela multiplicidade.

Nos registros da vida urbana no Rio de Janeiro, a composição racionalmente organizada, típica do neoclássico com a distribuição calculada das figuras e o amplo uso da perspectiva central – é empregada para revelar as contraditórias relações entre senhores e escravos. Em uma cena doméstica, os negros parecem integrar a família senhorial; em outra cena de rua, a escrava negra carrega, elegantemente, as armas do oficial da corte, símbolos ostensivos de um poder de aparência. Entre escravos e senhores, estabeleciam-se relações de uma estranha interdependência, em que os negros serviam aos brancos, mas também buscavam, até certo ponto, imitá-los; e em que os brancos, por sua vez, se utilizavam dos negros tanto para garantir a sobrevivência através da exploração dos "negros de ganho" quanto pa­­ra ostentar a sua nobreza.

O que impressiona na obra de Debret é como a construção racional do espaço foi utilizada de forma a constituir retratos precisos e vivazes do nosso passado, em que também se revela muito de crítica social. Através da ampla divulgação proporcionada pelo empenho louvável de Raymundo Ottoni de Castro Maya, que recuperou da França e trouxe ao Brasil os originais do álbum Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil na década de 1940, as aquarelas do artista francês passaram a integrar o nosso patrimônio cultural e também o nosso patrimônio imaginário. Afinal de contas, a maneira como imaginamos o Brasil do início do século 19 é marcada de forma definitiva pela obra de Debret, que, durante os quinze anos que viveu no país, registrou, a partir do seu ponto de vista estrangeiro, a vida na corte, o dia a dia das cidades, a escravidão, as populações indígenas e a natureza exuberante, coisas que encantavam os olhos europeus pela sua novidade e exotismo.

O trabalho de Debret possui essa característica cultural própria do país: a contradição entre a mentalidade europeia e uma realidade colonial, em que diferentes raças e povos se encontravam em uma terra desconhecida para compor uma nova população. No empenho em descobrir e documentar o Brasil, sua obra acabou sendo incorporada pela cultura e pela arte brasileira como parte de algo que, desde a Independência, é uma constante na nossa produção cultural: o esforço dos brasileiros para descobrir o próprio país.

Também no seu registro das paisagens, com o engenhoso emprego de diferentes intensidades e cores de linha criando diversos planos espaciais, o artista revela um mundo que para nós é um pouco familiar, um pouco desconhecido, reforçando o sentido de descoberta que é responsável pelo fascínio da sua obra. Como nos explica a curadora Anna Paola Baptista no catálogo da exposição, não se sabe se Debret visitou realmente o Sul do país: era parte da tradição neoclássica a pintura de estúdio, muitas vezes realizada a partir de imagens feitas por outros artistas. Este dado não elimina o seu mérito: afinal de contas, a forma como entendemos o país não é mais que um conjunto de representações. Dessa construção cultural que chamamos "Brasil", Debret é um dos elementos da mais alta importância, revelando muito sobre o nosso passado e também sobre o nosso presente. Assim como a nossa população é formada por estrangeiros "abrasileirados", a obra do francês Debret é parte fundamental da arte brasileira, revelando nossas mazelas, nossas riquezas e nossa profunda – mas problemática – originalidade.

O autor é professor de His­­tó­­ria da Arte da Escola de Mú­­sica e Belas Artes do Paraná, crítico de arte e mestre em História da Arte pela Uni­­camp. Atualmente é douto­­rando em Estudos Literários pela UFPR.

Serviço

Debret – Viagem ao Sul do Brasil, exposição de Jean-Baptiste Debret (confira o serviço completo da exposição). Galeria da Caixa (R. Conselheiro Laurindo, 280 – Centro), (41) 2118-5111. Visitação de terça-feira a sábado, das 10 às 21 horas, e domingo, 10 às 19 horas. em cartaz até o dia 21 de agosto.

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