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Há um Chico notadamente elaborador, experimentador de formas que se manifesta com maior intensidade em composições como "Construção" (1971), "Corrente" (1976) e "Pelas Tabelas" (1984), como já foi abordado com brilho e propriedade, e em detalhe, por alguns analistas. Charles A. Perrone (em Letras e Letras da MPB), por exemplo, sublinhou a "engenharia verbal" envolvida na primeira, uma autêntica construção poético-musical em que a presença de proparoxítonas no final de cada frase cria "um efeito fonético de queda o qual ocorre também na melodia", combinação essencial, haja vista que no enredo da canção um operário – que poderia ser o Pedro de alguns anos antes, ou um Amarildo de nossa época – cai do andaime de um prédio que está sendo erguido.

Curioso observar que a criação de uma canção com a utilização maciça (metade dos 32 versos) de proparoxítonas já tinha sido experimentada por Chico dois anos antes: "Rosa-dos-Ventos" ("E do amor gritou-se o escândalo, / Do medo criou-se o trágico, / No rosto pintou-se o pálido, / E não rolou uma lágrima / Nem uma lástima / Pra socorrer"). E, mais curioso ainda, que, muito antes, houve uma outra canção, também extensa, com proparoxítonas nos finais de todos as suas linhas: "O Drama de Angélica", de Alvarenga e M.G. Barreto, datada de 1943. Ao contrário dos 41 eloquentes dodecassílabos do clássico de Chico, porém, os 96 versos do sucesso da dupla sertaneja Alvarenga e Ranchinho, igualmente metrificada, são curtos, de apenas quatro sílabas – o que torna, por outro lado, ainda mais virtuosístico o emprego intensivo e extensivo das proparoxítonas. As duas medidas, a longa e a curta, serviram de todo modo a propósitos opostos: o de ser crítica, no caso de uma canção, e cômica, no da outra.

Engenho na estrutura e técnica poética desenvolvida refinando a crítica social e política também concorrem para a qualidade de "Corrente", em que outra vez o título, irônico em relação a um dado da realidade (a propaganda do governo militar), coaduna-se com a forma da canção, composta por frases poéticas e melódicas que vão se encadeando.

Equivalência isomórfica na conexão entre título e composição está também associada a "Pelas Tabelas", na qual o modo como "letra e música se completam de modo notável" e "os versos completam cada estrofe no começo da seguinte".

Quase duas décadas mais tarde, "Pelas Tabelas" influenciou a feitura de uma composição de um nome das gerações recentes da música brasileira: "Cadê Teu Suín", do repertório da banda Los Hermanos, assinada por Marcelo Camelo, de 2001. Naquela, a última sílaba do final de cada quarteto é simultaneamente a primeira do quarteto seguinte: "Eu achei que era ela puxando um cor-/dão oito horas e danço de blusa amarela...". Na interessantíssima criação de Camelo, trabalho de artesão, a bossa da letra de Buarque é aplicada de verso a verso, desde o início: "Cadê teu repi/quem é teu padri/onde é que tu to/cadê teu suín..." – e assim por diante, nos 33 versos das suas quatro estrofes.

Em Chico, construção, elaboração, experimentação formal estão sempre a serviço da transmissão de uma emoção.

"Poesia, emoção que perdura", disse Pound, definição que vem à mente quando se pensa no percurso compositivo de Chico, tão claros são os momentos em sua obra que produzem uma atmosfera de poesia instaurada por uma reação comovida a certas canções até hoje, sem dar mostras de que isso vai ser diferente amanhã. Curiosa e interessantemente, alguns desses momentos-canções estão associados com outro artista, cantando ou compondo com Chico.

"Sem Fantasia", em dueto com Maria Bethânia, lançada num histórico Ao Vivo, álbum gravado pelos dois em 1975 (e que trouxe também entre suas faixas "Flor da Idade", cantada por ele apenas). "Cálice", canção contra a censura composta com Gil em 1973, quando teve sua interpretação pela dupla censurada ao vivo (ordenaram que desligassem os microfones no meio da execução). Mas que foi registrada em disco cinco anos depois com Milton Nascimento num duo impressionante, como haveria de ser (como tantas vezes é) uma gravação com participação de Milton, ainda mais de uma canção como essa, pela comoção que costumava causar no período.

(E que ainda atualmente causa. Como em abril do ano passado, em Marabá, no Pará, por ocasião do julgamento dos acusados pelo assassinato do casal de extrativistas José Claudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo. Antes de começar a seção do primeiro dia, de manhã cedo em frente do fórum, dezenas de integrantes do MST fizeram uma performance dramatizando as centenas de crimes de morte sem julgamento nem condenação cometidos no campo, na região. A representação foi ao som de "Cálice", nas vozes de Chico e Milton, que eles acompanhavam em uníssono; arrepiante. O MST, por sinal, inspirou Chico na letra que fez para música de Milton, e que este gravou em 1997, "Levantados do Chão", mais um exemplo, na obra de Chico, de canção participante, de engajamento no nível social, assumindo a visada de sofridos e injustiçados homens brasileiros comuns, sem, no entanto, rebaixamento da qualidade poética na fatura dos versos; sem concessão artística, pelo contrário).

Tome-se o efeito disso – Chico e Milton em "Cálice" – e aumente-se consideravelmente a sua intensidade e o seu sentido. É o que se tem em outro ponto, o mais alto, de convergência das trajetórias dos dois artistas e um dos mais altos e luminosos dos últimos quarenta anos de arte da canção popular mundial: "O Que Será (À Flor da Pele)". Tudo o que a poesia de longo fôlego de Chico abrange e abarca parece, para começar, estar contida e encontrar sua tradução não verbal nos quarenta segundos do vocalise de Milton que servem de introdução à canção e prenúncio do que vem, o início dos versos. Depois, estes, nas vozes dos dois, fazem o resto: dizer o que até hoje nenhuma canção disse.

Carlos Rennó, jornalista, letrista e autor de versões brasileiras de canções de Cole Porter, como "Façamos (Vamos Amar)", gravada por Elza Soares e Chico Buarque

*Este texto é uma versão adaptada para o Caderno G Ideias de um ensaio inédito sobre Chico Buarque. A íntegra está presente no livro O Voo das Palavras Cantadas (Dash, 320 págs, R$ 42), coletânea de Carlos Rennó sobre canções brasileiras.

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