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O apuro editorial na apresentação deste belo livro faz jus não só à originalidade do tema nele abordado, como ainda à excelência dos especialistas que o conceberam, uma brasileira e dois galegos, todos longamente versados na difícil tarefa de ler, editar e interpretar a complexa matéria da tradição poética trovadoresca em terras peninsulares. Os obstáculos são mesmo numerosos e, para obter resultados satisfatórios, é indispensável o olhar arguto que aqui se constata a cada página: quer pela escassez de testemunhos e pela especificidade material dos poucos manuscritos disponíveis, contendo as cantigas; quer pela ausência da notação musical, salvo parcas exceções, embora esses textos tenham sido escritos para o canto; quer pelo estado fragmentário de muitas composições ou pela dificuldade de atribuição delas a trovadores de biografia tantas vezes nebulosa; quer pela filiação dessa poesia ao modelo provençal de que proveio sem, no entanto, perder as marcas de sua própria identidade; quer, ainda, pela necessidade de situar essa produção em seu tempo (fins do século 12 a meados do 14) e de compreendê-la segundo o gosto normativo que a regeu. Ou seja, por tudo isso e por muito mais, a indiscutível qualidade dos fremosos cantares não se revela de imediato, é preciso torná-la visível também ao leitor não especializado. Nesse sentido, os autores prestam um enorme serviço inclusive à tradição lírica brasileira, cuja poesia, como se sabe, tem os pés plantados em suas heranças d’além-mar.

Pois os organizadores da antologia saíram-se muito bem de sua pacienciosa tarefa, talvez por terem objetivos bastante claros. Dentre os 160 trovadores cujos nomes são conhecidos, escolheram apenas 25 (e outros quatro que com eles estreitamente dialogaram: Dom Afonso X, Dom Dinis, João de Gaia e João Zorro), o que pareceria amostra restrita, não fossem todos eles ligados a Santiago de Compostela (capital da Galiza), ou por referência textual própria ou por documentação histórico-geográfica que os filia àquela área. Esse é um critério de escolha verdadeiramente relevante, considerando-se o papel que desempenhou Santiago como centro de peregrinação peninsular e europeu durante a Idade Média. Lugar de devoção religiosa, para ali confluíam diferentes estamentos sociais, da aristocracia à burguesia em ascensão, responsáveis, de uma maneira ou de outra, pelo poderio econômico da Sé, sua influência política e sua pujança cultural. Sendo essa poesia de matiz nobiliárquico, as poderosas cortes senhoriais que orbitavam à volta dos tentáculos compostelanos fomentaram uma produção que se irradia aos demais centros dos reinos ibéricos. Assim, além dos aspectos técnicos e estético-literários, a antologia oferece um amplo painel de relações socio-históricas, texto e contexto dinamicamente articulados. As enxutas “notas antes de iniciar o caminho” – título da introdução – estimulam o leitor a fazer, também ele, a “sua” peregrinação por terras galegas segundo a óptica dos poetas em foco.

O Caminho Poético de Santiago

Yara Frateschi Vieira, Maria Isabel Morán Cabanas e José António Souto Cabo. Cosac Naify, 224 pp., R$ 32.

Aliás, é bom que se reitere: tudo neste livro é concisão, economia que só convence quando é precisa. Apoiados em uma sólida e atualizada bibliografia, bem como em documentação oriunda de diversas fontes (clericais e profanas), os organizadores estão à vontade para fazer observações até então inéditas, levantar hipóteses sobre passagens herméticas ou divergências estruturais de versos e estrofes, ou optar por determinada solução filológica, desde que respeitada, dentro do possível, a lição dos manuscritos.

Com isso, o parâmetro metodológico que daqui se colhe é instigante para qualquer pesquisador. Os 62 textos selecionados foram abordados segundo uma mesma sequência analítica: dos dados biográficos e histórico-culturais envolvendo o trovador, passa-se à indispensável paráfrase do texto e à sua sucinta interpretação. O leque de cantigas procurou ater-se à variedade de gêneros – tanto os maiores, cantiga de amor, cantiga de amigo, cantiga de escárnio e maldizer, quanto os menores, a tenção, a pastorela e o descordo – de modo inclusive a poder desnudar o requinte formal dessa poesia, através de recursos como o dobre, o mozdobre, o paralelismo, as coblas doblas, a palavra perduda, a atafinda, a aequivocatio, a maestria, o refrão, o contrafactum etc.. Os laços temáticos com a moda provençalizante do amor cortês ou com a tradição românica do locus amoenus, apontados também por meio do diálogo que textos e trovadores estabelecem entre si, são outro segredo do dinamismo da coletânea.

Os apêndices, ao final, atendem ao formato geral do livro. Se o glossário é sempre um ponto de partida, pode-se contar ainda com fac-símiles dos “cancioneiros”, em que se destaca o da “ajuda”, por ser contemporâneo aos trovadores e por trazer iluminuras (mais iniciais capitais), com o espaço reservado à notação musical que não se concluiu. Consoante os intuitos sociológicos, históricos e geográficos que moveram os organizadores, um utilíssimo mapa de Santiago de Compostela orienta o leitor, bem como um índice dos topônimos que aparecem nas cantigas.

Por fim, não se conclua sem aplaudir a feliz ideia do capítulo “Trovadores e textos em diálogo”, em que comparecem Dom Afonso X (1221-1284) e Dom Dinis (1261-1325), avô e neto lado a lado, responsáveis ambos por reinados em que os trovadores tiveram a melhor acolhida e incentivo. Do primeiro, foram selecionados apenas dois textos, eloquentes quanto ao potencial criativo do monarca Sábio: “Non me posso pagar tanto”, com “fortes ressonâncias intertextuais de origem latina, castelhana, provençal e francesa”; e “O genete”, movimentada descrição de uma batalha entre mouros e cristãos, no episódio da chamada “Reconquista”, em que o leitor quase “ouve” o tropel dos cavalos, tal a força do ritmo e das rimas no poema. De Dom Dinis, selecionaram-se quatro amostras lapidares, das quais resultou uma “aula” sobre o trovadorismo galego-português: “Levantou-s’ a velida”, em “conversa” com a cantiga de Pero Meogo, e “Ũa pastor ben talhada”, pastorela que introduz na lírica peninsular a imagem única do “papagai mui fremoso”; com “Quer’ eu en maneira de proençal” e “Proençaes soen mui ben trobar”, o Rei mostra-se não só um autêntico cultivador da moda provençal de fazer poesia, como também um afinado observador das diferenças entre ela e a lírica peninsular, na forma e no conteúdo.

No caso do leitor brasileiro, principalmente do estudante, espera-se que esta antologia – trabalho impecável! – corrija de vez a injustificada distorção de supor que a poesia trovadoresca é apenas “repetitiva” e que cantiga de amor e cantiga de amigo pouco se distinguem entre si... O melhor é poder constatá-lo “passeando” por Santiago de Compostela e arredores, como quiseram os organizadores.

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