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Além de astronautas e da cachorra Laika, algumas coisas improváveis já foram lançadas ao espaço: ouriços do mar (para pesquisas biológicas); as cinzas de Scotty (de Star Trek); uma estação espacial inflável (para provar materiais); excrementos de pássaros (para ver se eles se desintegram ao reentrar na atmosfera); batatinhas (para ver como elas ficam quando expostas ao vácuo); e a escultura de um bailarino (esta não se sabe bem por quê).

Se um extraterrestre porventura encontrar alguma dessas quinquilharias pelas estradas do universo, pode até imaginar como parecemos, ou quais são algumas de nossas preferências, ou ainda o que pudemos construir à custa da destruição parcial do planeta em que vivemos. Mas faltará algo que mostre aos homenzinhos verdes do que somos feitos por dentro. Uma música de Morrissey (com tradução e bons fones) resolveria. Quase qualquer uma delas.

Porque Moz é, antes de tudo, um escritor. E a literatura ainda tem este poder meio mágico de traduzir com certa precisão o sentimento mais profundo. Desde “Heaven Knows I’m Miserable Now” (que título hiperbolicamente autodepreciativo é esse?), primeiro single dos Smiths a entrar no top 10 das paradas britânicas, há 30 anos, até o conjunto de canções de World Peace Is None of Your Business, de 2011 (um disco ingênuo em sua premissa de atacar o “sistema”), Morrissey escreve como se estivesse eternamente de castigo – algo que sugere em “Speedway”, música do ótimo Vauxhall and I, de 1994.

Com seu jeitão de crooner de restaurante dançante, Morrissey borra a fronteira entre a elegância e a cafonice. Diz verdadeiras maravilhas sobre a vida e tudo o mais – “Everyday is Like Sunday” é de uma beleza estonteante -- ao mesmo tempo em que torra a paciência ao cancelar um show na Islândia porque a lanchonete do festival não tirou os hambúrgueres do cardápio. Sim, ele pode.

Morrissey é um homem de muitas queixas. Um inadequado de origem, que idolatrava Oscar Wilde na adolescência -- e que, se repararmos bem, em algumas fotos até emana a figura do poeta. Não haveria outro jeito, portanto: sua sensibilidade é mesmo perfurante. E nós somos um pouco Moz. Guardamos em algum lugar uma fragilidade existencial que hoje em dia não faz mais sentido porque é facilmente estereotipada.

Fosse só essa afetação justificada, Morrissey teria ainda mais detratores. Mas seus fãs são vitalícios e a congregação pró-Moz existe e só aumenta. É que, além de ter escrito algumas das músicas mais importantes da história do rock (“How Soon is Now”, “The Boy With the Thorn in His Side”, “This Charming Man”, “There is a Light That Never Goes Out”...), também foi político e irônico.

Pois não se esqueça: foi esse britânico antimonarquia que, em 1986, lançou um disco chamado The Queen Is Dead (“A Rainha Está Morta”), para a consternação de Elizabeth II. No álbum mais cultuado dos Smiths, há a canção “Some Girls Are Bigger than Others”. Para além das referências históricas de butique, Moz tira um sarro das gordinhas. Outra música que causou desalinho na terra da rainha foi “Girlfriend in a Coma”, em que Moz atesta o óbvio em tom jocoso: “Namorada em coma é caso sério.” Por isso, apesar de anacrônico de alma e ultrarromântico por natureza (poderia ter sido colega de Álvares de Azevedo numa boa), Moz parece ter se adiantado no tempo ao usar a ironia inteligente como expressão – algo que é comum hoje, principalmente nas redes sociais, quando isso não descamba para o cinismo insignificante.

Essas pequenas incursões politicamente incorretas podem ser vistas como incoerentes, já que o cantor reafirma sua visão igualitária do mundo, com fortes críticas à indústria da carne e ao machismo. Talvez Moz seja um eterno desajustado, ou um tiozão mimado mesmo, que procura fazer com que o mundo seja como ele, Steve Patrick Morrissey, quer.

Moz é frágil, entretanto. Em 2013, tratou de uma úlcera severa, de uma pneumonia e de uma intoxicação alimentar. Em 2014, teve uma infecção respiratória e revelou estar fazendo tratamento contra um câncer.

Qual um mestre da resiliência, o nobre sofredor disse o seguinte: “Eles retiraram tecidos cancerosos de mim quatro vezes já, mas tanto faz. Se eu morrer, morri. Se eu não morrer, não morri.”

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