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A perda de um dos cinco sentidos que significam, em parte, nossa inevitável e urgente relação com o mundo material pode ser o prenúncio de um abismo particular. Pelo menos, foi assim para Laila, a personagem cujo caráter repulsivo é a essência de Turismo Para Cegos, romance de estreia da escritora cearense Tércia Montenegro.

O livro centraliza a história em duas pessoas envolvidas num relacionamento amoroso, porém oportuno. Laila, que se descobre com um problema ocular irreversível e repentino, passar a viver com o funcionário público Pierre, que acredita ter um bom motivo para aceitar as condições restritivas da companheira: sendo cega, ela não poderia julgá-lo pela sua feiura.

Previsível pelos fatos, o mundo compartilhado entre o casal é frágil e parece estar sempre a ponto de sucumbir frente aos desvarios que nascem da relação e de suas vidas particulares.

Ex-estudante de artes visuais, Laila teve de sufocar seu impulso criativo. Viu-se em desespero ao se deparar com o esfacelamento de memórias físicas, mesmo que fosse de um universo que para ela já não fazia tanto sentido.

É curioso como Tércia desenvolve a personalidade amargurada e vingativa de Laila. Pelo menos para o leitor que está sempre em busca de alguma identificação com os personagens, não é preciso ir além da segunda página para saber que ali se apresenta uma pessoa de gestos e pensamentos desprezíveis.

Mas o desgosto que isola Laila do ambiente exterior e, de uma certa forma, dos próprios leitores, é o grande mérito da escritora em sua obra de estreia. Ao mostrá-la dentro de uma bolha de rancor contínuo e ingratidão, a autora arranca o manto sacro que parecer tornar certas pessoas imunes aos sentimentos sarcásticos, tão intrínsecos à vida como os pensamentos.

Além de uma exploração psicológica certeira, Turismo para Cegos ganha corpo em estilos particulares muito bem construídos. Com uma aptidão forte ao microscópico, Tércia recorre a metáforas perfeitas e cresce a narrativa com descrições que tornam seu texto rico em detalhes físicos e psicológicos, como os que usa para narrar as viagens organizadas por Pierre – na tentativa de que a companheira estude seus outros sentidos e conheça seu próprio modelo de alma.

Da primeira à última página, o livro de Tércia Montenegro é um relato de incerteza e sensibilidade. Impossível lê-lo sem tentar esmiuçar a fundo as contradições dos personagens e pensar no modo como os caprichos podem despedaçar as relações humanas.

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