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 | Ilustração: Felipe Lima
| Foto: Ilustração: Felipe Lima

"Subjugam a capacidade do leitor, mesmo aquele em processo de formação, por acreditarem que ele não vai estabelecer um diálogo com seu tempo. Estamos perdendo um tempo precioso com perseguição descabida", afirma a professora de literatura Milena Martins, especialista em Monteiro Lobato.

Indignada com a possibilidade de as obras de Lobato quase serem queimadas em praça pública, Milena escreveu uma carta aberta ao Ministério da Educação para rever o conceito do que é obra racista (uma das cláusulas do edital do PNBE que limita os critérios na compra de livros) e analisar se de fato os livros de Lobato devem sofrer esse tipo de censura. Foi além. Abriu um abaixo-assinado sobre o assunto e em menos de uma semana conseguiu coletar cerca de 1,7 mil assinaturas contra a suposta perseguição feita ao escritor brasileiro.

"Para quem realmente leu Negrinha, fica óbvio que o conto denuncia os maus-tratos a uma filha de ex-escrava. O que Lobato fez foi denunciar o racismo no Brasil dos anos 1920. Um texto que apresenta o racismo, não se posiciona a favor dele", diz Milena. Para ela, soa absurdo que o Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (Iara) tenha protocolado uma representação administrativa na Controladoria-Geral da União (CGU) pedindo para que esses livros deixem de fazer parte do PNBE. "Não há texto da década de 1920 mais antirracista do que Negrinha. É como se pensássemos que o conto "O Caso da Vara", de Machado de Assis, que também apresenta cena de violência contra uma negra, fosse efetivamente um conto racista. A representação me pareceu um erro de interpretação tão evidente que decidi me manifestar." O tema rende debates acalorados.

Por que a iniciativa de escrever uma carta aberta sobre o assunto?

Escrevi porque o edital do PNBE tem boa intenção, que é evitar livros racistas, mas ele está sendo compreendido de maneira equivocada, de que qualquer livro que apresente o assunto racismo seja racista e, por isso, mereça ser censurado. Minha intenção foi tornar público que o livro que trata desse tema traz o assunto para o centro da discussão, não se omite num debate da maior relevância.

É uma questão de má interpretação do livro?

Não se trata de questão de interpretação porque pode parecer que o texto está aberto para duas ou mais interpretações, como seu eu dissesse que ele não é racista e o outro dissesse que é racista. A questão é que o texto não é racista, porém, se eu extrair algumas frases soltas dele e querer interpretá-las, ele vai parecer racista. Um exemplo: a Negrinha é chamada de Preta. Ela sequer tem nome, é apenas Preta. O uso dessa palavra no início do século 20 tinha o mesmo peso que a utilização atual da palavra negro. E também não se podia esperar que o escritor usasse a palavra afrodescendente, que é de criação posterior. Eles [as pessoas que pediram a censura dos livros no STF] pegaram uma frase racista da Dona Inácia e atribuíram essa frase a Lobato quando, na verdade, ele está representando de maneira caricata e sarcástica uma personagem que é racista.

Mas Lobato disse ser eugenista em suas cartas.

De fato há uma carta em que ele revelou sua simpatia pela eugenia. Mas, no conjunto de outras cartas, ele reformula esse pensamento. O Lobato apoiou o eugenismo, como os cientistas e intelectuais brasileiros apoiavam naquela época. Quando isso deriva numa ideia segundo a qual há raças superiores e inferiores e isso passa a ser um pensamento nazista, é abominável. Até então, porém, a ideia de pureza racial era tida como uma ciência séria. Mas veja. O que escrevo numa carta, num e-mail ou falo ao telefone com um amigo não é aquilo que eu publico. O que escrevo numa carta pode ser produto de uma reflexão momentânea e motivada por outra reflexão feita pelo meu amigo. Os seres humanos são muito contraditórios e donos de ideias, muitas vezes contraditórias. Lobato se posicionou sobre temas dos mais diversos no país, era um homem público muito participativo. E, por isso, algumas das suas contradições são evidentes.

Há outras obras brasileiras com expressões ou posicionamentos que poderiam ser interpretados como racistas?

Uma diversidade delas. Em Macunaíma, de Mário de Andrade (1893-1945), o personagem de mesmo nome é descrito como preto retinto, filho do medo da noite. E não é porque ele é chamado de preto que esse é um preconceito do Mário. O livro tem uma passagem que vale citar: Macunaíma encontra uma gigantesca poça d’água e lá se banha. Essa gigantesca poça d’água era mágica e ele fica loiro de olhos azuis. O primeiro irmão de Macunaíma também se banha nessa água e fica moreno. Macunaíma o consola mais ou menos assim: não fica triste não, mano, antes fanho do que sem nariz. Se quiserem ler isso como elogio de Mário ao racismo, a perseguição pode ganhar corpo de forma equivocada. É isso o que eu gostaria de evitar: que, em nome da liberdade interpretativa, as obras fossem mal compreendidas, os autores fossem julgados pelo preconceito que está incrustado na nossa sociedade.

Por que a senhora diz que está se subjugando a capacidade do leitor?

Sabe-se muito bem que, quando lemos um texto e nos sentimos mal, nos posicionamos. Se leio algo que diz que a mulher é tola e inferiorizada, eu não vou me sentir tola, vou me revoltar contra aquela ideia. É o mesmo que dizer que todos os leitores de Crime e Castigo se tornariam assassinos e as de Madame Bovary se tornariam adúlteras. Não nos submetemos aos personagens com essa facilidade, mesmo o leitor infantil. É incrível ver como as crianças se posicionam diante das maldades que acontecem na literatura, como elas sofrem com os personagens, se posicionam contra os lobos e as bruxas. E não apenas nos livros, mas no cinema, no teatro, na televisão.

A literatura viveria sem esses estereótipos?

Não existe literatura sem estereótipos. Todas as obras literárias contêm personagens principais e secundários e, no mínimo, os secundários são estereotipados. E isso há no cinema, na televisão, na comédia, na música. Vamos eliminar o malandro da música brasileira? Nós queremos eliminar a malandragem das práticas brasileiras, contudo é impensável eliminar o malandro da arte, assim como o caipira da música caipira. Não se pode ter como objetivo a limpeza dos estereótipos de uma sociedade.

E os outros tipos de preconceitos embutidos na literatura?

Um outro procedimento literário é silenciar sobre certos assuntos. Os escritores românticos quase não falavam sobre escravos ou homens negros livres. Se calar sobre essa questão também é um posicionamento e ele pode ser mais problemático do que tratar o tema de maneira violenta. Negrinha aborda o assunto de modo violento, provoca em nós uma indignação de raiva contra o racismo.

A senhora é a favor de uma nota explicativa no livro?

Achar que uma nota ou um prefácio resolve o problema é ilusão. A nota apresentará um ponto de vista, dirigirá a leitura, como o faz o prefácio de Caçadas de Pedrinho ao dizer que caçar onças é errado. Será mesmo necessário? Esse tipo de nota menospreza o leitor. Tem uma edição de Os Lusíadas que traz uma carta da inquisição e esta carta dizia que a obra tinha deuses mitológicos e que, apesar disso, era uma obra cristã que estava liberada para leitura. Hoje lemos essa carta e ela é risível. Sou contrária a notas que direcionam para uma certa interpretação. A obra Negrinha mostra que o negro não tinha lugar na sociedade brasileira, era o contexto social da época. Não é preciso uma nota para entender isso. Não necessitamos datar a obra com uma questão de nosso tempo.

Qual sua posição sobre o racismo?

Essa polêmica está suscitando uma polarização terrível, uma suposta e falsa disputa entre racistas e antirracistas. Com essa carta aberta, eu não venho a público para me defender de nenhum racismo, porque não sou racista e porque luto contra o racismo. Venho para defender o acesso do leitor a livros de qualidade nas bibliotecas escolares. Tem muita porcaria no mercado editorial para crianças. E muita coisa boa. Lobato é uma dessas coisas muito boas.

Seus alunos negros já disseram que ficam incomodados com esse tipo de leitura?

Não. Tive uma experiência com uma criança bem pequena que estava lendo Menina Bonita do Laço de Fita, de Ana Maria Machado. Na obra há a seguinte frase: "Menina bonita da fita branca, qual é o teu segredo para ser tão pretinha?" A criança que lia o livro comigo estava aprendendo as cores e disse: ela não é preta, é marrom. Foi legal essa percepção infantil. Ela ainda não entende de racismo, mas mostrou que a palavra preta é imprecisa.

Por que a polêmica em torno do racismo nas obras literárias está ganhando força?

Talvez porque o edital do PNBE esteja sendo mal compreendido. No edital está escrito que "Não serão selecionadas obras que apresentem moralismos, preconceitos, estereótipos ou discriminação de qualquer ordem." O que eu argumento na carta aberta ao MEC é que as obras literárias apresentam sim moralismos, preconceito e discriminação. As obras são filhas de seu tempo, são impregnadas pela ideologia e pelos valores da época em que foram escritas. E as obras solicitam que o leitor se posicione, que reflita, que se torne crítico.

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