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 | Ivonaldo Alexandre/Gazeta do Povo
| Foto: Ivonaldo Alexandre/Gazeta do Povo

Há 40 anos, um projeto educacional completamente diferente nascia em Portugal, sob a coordenação do ex-eletricista que se rendeu ao magistério José Pacheco. Na Escola da Ponte, uma instituição pública, não há classes separadas por idade, provas ou aulas expositivas. Os estudantes formam pequenos grupos de acordo com o interesse comum por um assunto e com um educador estabelecem um programa de trabalho de 15 dias. O professor orienta sobre o que e como pesquisar o tema e, a fim de duas semanas, o grupo volta a se reunir. Se o aprendizado tiver sido adequado, os estudantes se reúnem com outros colegas, para estudar outro assunto.

Apesar da desconfiança que o modelo ainda provoca, a Ponte não precisa mais provar nada a ninguém. Seus estudantes se destacam em avaliações nacionais e há muito tempo o educador José Pacheco inspira profissionais em todo o mundo. Neste ano, a Secretaria de Educação do Mato Grosso do Sul informou que duas escolas públicas do estado vão testar um formato semelhante ao português. Não será a primeira vez no Brasil. Desde 2012, uma escola de ensino fundamental de Cotia (SP) adota práticas inspiradas na Ponte. Na parede de cada sala de estudo há uma lista completa dos conteúdos exigidos pelo MEC nos Parâmetros Curriculares Nacionais. Com base na relação, o próprio educando monta o seu programa de aprendizado, guiado por um educador.

No ano em que o modelo da Escola da Ponte completa quatro décadas, José Pacheco veio a Curitiba para uma palestra no TEDx Educação, na Praça Santos Andrade. E falou com a Gazeta do Povo sobre o projeto português e o sistema educacional no Brasil. Confira:

Em uma entrevista em 2011 à Gazeta do Povo, o senhor disse que se sente incomodado por ter de falar sempre da Escola da Ponte, e que prefere falar do Brasil. Há quanto tempo o senhor mora no nosso país? Por que decidiu se mudar para cá?

Efetivamente, o incômodo existe. Os trinta anos passados na Ponte parecem ser um estigma... Desde há cerca de quinze anos, estou no Brasil. E, muitas vezes, escutei comentários como: a Escola da Ponte é portuguesa, não é brasileira. Isso foi possível na Europa, mas não é possível no Brasil. Decidi passar o resto da minha vida de educador num país onde sei ser possível uma melhor educação, num Brasil onde encontrei os melhores teóricos e excelentes projetos. Com professores por quem nutro profundo respeito, ajudei a criar protótipos de comunidades de aprendizagem, uma das novas construções sociais, que substituirão o modelo e escola que, infelizmente, ainda temos.

O senhor trabalha assessorando escolas brasileiras. De forma geral, a direção e os professores tentam repetir por aqui o que foi feito na Ponte? É possível aplicar aqui as experiências que deram certo por lá ou cada escola precisa encontrar seu próprio caminho?

Não se creia ser possível (e muito menos aconselhável) querer instalar réplicas da Escola da Ponte no Brasil. Embora as dificuldades encontradas no Brasil sejam idênticas àquelas que defrontamos em Portugal e em outros países, onde ajudei a desenvolver projetos. O que acontece no Brasil é a criação de protótipos de novas construções sociais de aprendizagem, a partir da realidade (ou realidades) brasileira, projetos fundamentados em propostas de teóricos brasileiros. O Brasil tem tudo aquilo que precisa. Só precisa recuperar a autoestima.

O governo do Mato Grosso do Sul informou neste ano que duas escolas públicas do estado vão testar um ensino sem disciplinas, provas e aulas expositivas, nos mesmos moldes do que acontece na Escola da Ponte. Já há algum tempo, outro colégio do Brasil adota práticas inspiradas na escola portuguesa. É o projeto Âncora, do município de Cotia (São Paulo). Quais são as semelhanças e diferenças entre o modelo do Âncora e o da Escola da Ponte?

Não há duas escolas iguais, nem acredito em modelos. Portanto, não existe a possibilidade de surgirem projetos iguais. Aquilo que é afim entre os projetos é a ruptura com uma tradição de educação hierárquica e burocrática. São escolas que, com prudência (crianças não são cobaias de laboratório), ousam reconfigurar as suas práticas, assumir formas específicas de organização do trabalho escolar, em dispositivos de relação, nas atitudes do dia a dia, que viabilizam práticas de educação integral. Outra semelhança é o fato de essas escolas cumprirem, efetivamente, os seus projetos político-pedagógicos. Transformam-se com referência a uma matriz axiológica, a uma visão de mundo e de sociedade, que o Brasil merece e pode ter.

A Escola da Ponte virou referência mundial e os alunos da instituição conseguem melhores notas que os de outras escolas. E no projeto Âncora? As medidas tiveram efeito nas avaliações oficiais? O senhor ainda acompanha a escola?

A Escola do Projeto Âncora existe apenas há quatro anos. Ainda é cedo para extrair dados fidedignos de avaliação quantitativa. Porém, avaliações de natureza qualitativa já demonstram indícios de práticas conducentes à excelência acadêmica e à inclusão social. Eu acompanho o Âncora de modo discreto, pois respeito a autonomia da escola e desejo que o projeto conquiste sustentabilidade.

Aliás, por falar em avaliações, o senhor é um crítico do “modismo” das avaliações no Brasil. Por quê?

No Brasil, quase não existe avaliação. Não existe rigor na aplicação de um instrumento tão falível como a prova. E existe uma confusão muito grande entre avaliação e classificação. Os baixos índices de desenvolvimento de educação básica deveriam constituir-se em alerta e motivação para mudar o que deve ser mudado. Parece que não são retiradas ilações. Nada acontece.

Como se dá a avaliação dos alunos na Escola da Ponte e no projeto Âncora? Como as escolas verificam se as crianças aprenderam o que é esperado para a idade delas?

A avaliação praticada na Ponte e no Projeto Âncora é aquela que a lei estabelece: avaliação formativa, contínua e sistemática. Os registros de avaliação e as evidências de aprendizagem constantes dos portfólios de avaliação dizem-nos o que as crianças aprenderam, quer no domínio cognitivo, quer no domínio atitudinal.

Quantas escolas no mundo seguem hoje projetos semelhantes aos da Ponte? E no Brasil?

Não sei quantificar, mas deverá haver um milhar de escolas inspiradas nas práticas da Ponte. No Brasil, mais de duzentas.

De forma geral, como o senhor avalia o sistema educacional no Brasil? O que mais chamou a sua atenção sobre o projeto de educação no Brasil?

De cada cem alunos de início do Fundamental apenas onze chegam à universidade. E, mesmo na universidade, o analfabetismo funcional prospera. Mas não é inevitável que os poucos jovens, que ingressam no ensino médio a ele cheguem “mal preparados”. Nem que metade dos que ingressam na universidade não a completem deverá ser considerada uma fatalidade. Para inverter essa trágica situação basta que a pedagogia prevaleça nas escolas onde hoje reina a burocracia. A situação poderá ser alterada se os critérios de natureza administrativa não estiverem submetidos a ocultos interesses político-partidários. O Brasil dispõe de uma boa Lei de Diretrizes e Bases, que continua por cumprir, há cerca de vinte anos. Os plano nacional e os planos municipais de educação sugerem medidas que, a serem concretizadas, irão operar melhorias. Mas, recordemos que o anterior plano decenal apenas foi parcialmente cumprido. E que o sistema educativo insiste no desperdício de recursos e de gente. Sejamos esperançosos. Assisto ao surgimento de projetos geradores de espaços de convivência reflexiva, de que as escolas carecem. Vejo cuidar da pessoa do professor, para que ele se veja na dignidade de pessoa humana e veja outros educadores e alunos como pessoas. Vejo serem desenvolvidas competências-chaves do século XXI: interagir em grupos heterogêneos da sociedade, agir com autonomia, usar ferramentas interativamente, competências que, dificilmente, o modelo de ensino convencional logra desenvolver. Acredito nos professores. E na parte saudável do poder público.

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