• Carregando...
Vítimas do ataque lançado por Bashar Al-Assad na semana passada: gás mortal tem sido usado contra os opositores do governo sírio | Fadi Al-Halabi/AFP
Vítimas do ataque lançado por Bashar Al-Assad na semana passada: gás mortal tem sido usado contra os opositores do governo sírio| Foto: Fadi Al-Halabi/AFP

Em 21 de agosto de 2013, acordei quando ainda estava escuro, pouco antes das cinco da manhã, sem ar. Os olhos ardiam, a cabeça latejava e sentia a garganta fechada. Eu estava sufocando.

Tentava puxar o ar, mas só ouvia o chiado horroroso da minha própria garganta, bloqueada. Uma dor insuportável sacudia minha cabeça. O mundo começou a ficar turvo. Batia no peito, mas não conseguia respirar. Meu coração parecia estar a ponto de explodir.

De repente, minha traqueia se abriu. Uma lufada de ar encheu meus pulmões. Parecia que tinha um milhão de agulhas injetadas nos olhos. Meu estômago se retorcia e ardia. Eu arqueei o corpo para frente, me dobrando de dor, e gritei para o pessoal com quem dividia a casa: “Acordem! É um ataque químico!”.

Mais de dois anos antes, em 18 de março de 2011, minha cidade natal, Moadhamiyeh, município na periferia de Damasco com cerca de 80 mil habitantes, tinha organizado a primeira manifestação contra o governo.

De repente, minha traqueia se abriu. Uma lufada de ar encheu meus pulmões. Parecia que tinha um milhão de agulhas injetadas nos olhos. Meu estômago se retorcia e ardia.

Em questão de horas, as forças de segurança chegaram atirando e prendendo os participantes. Eu tinha acabado de voltar de Homs, onde estudava para ser tradutor do árabe para o inglês.

Cerca de um ano depois, em junho de 2012, as forças de Assad começaram um cerco a Moadhamiyeh, com a intenção de fazer os moradores rebeldes passarem fome; não recebíamos mais alimentos e suprimentos médicos. Os ataques, que começaram pouco mais de seis meses antes, eram incessantes. A cidade esvaziou. A casa onde nasci e cresci, perto da linha de frente, foi bombardeada várias vezes. Minha mãe e meus irmãos fugiram. Cerca de dez mil pessoas permaneceram presas ali.

Crianças e bebês morrendo de fome

Formou-se então um conselho de gestão da cidade sitiada. Eu era o tradutor, ajudando na comunicação com as organizações de ajuda humanitária e governos estrangeiros. Em meados de 2013, já tinha visto inúmeras crianças e bebês morrerem de fome. Diversos amigos que tentaram fugir foram capturados, torturados e mortos. Enterramos seus corpos mutilados.

Vivia em um apartamento abandonado, no centro, com três amigos: Abu Abdo, meu parceiro de escritas desde o colégio; Ahmad, amigo do ensino médio; Alm Dar, comandante de campo do Exército Livre da Síria. Com o cerco, só nos restava comer mato e fuçar no lixo para sobreviver.

Na noite de vinte de agosto, passamos bem umas quatro horas procurando comida. Nem no lixo encontramos alguma coisa. Depois de um tempo achamos algum capim, que fervemos, tomamos feito sopa e fomos dormir. Na manhã seguinte, nós nos vimos lutando contra um ataque químico.

Passamos umas quatro horas procurando comida. Nem no lixo encontramos alguma coisa. Depois de um tempo achamos algum capim, que fervemos, tomamos feito sopa e fomos dormir.

Ahmad e Abdo se arrastaram para fora da cama, lutando para respirar e tossindo furiosamente. Joguei água no rosto para tentar atenuar a sensação de queimação. Cambaleando, fomos tentando sair do quarto, arfando e vomitando. Ouvimos batidas urgentes na porta. “Socorro, por favor, eles estão morrendo!”, gritou nossa vizinha, Umm Khaled. Ela carregava os filhos, de quatro e seis anos, um embaixo de cada braço. Os dois estavam inconscientes, os rostinhos azul-amarelados. Ambos espumavam pela boca.

Alm Dar desceu correndo para pegar seu velho Range Rover. Ahmad e Abu Abdo o seguiram, carregando as crianças. Dei uma corrida pelo prédio, passando pelas janelas dilaceradas, as paredes em pedaços e montanhas de destroços, procurando feridos. Quando cheguei à rua, estanquei: dezenas de homens, mulheres e crianças se retorcendo no chão. Alguns gritavam, chamando os médicos, gemendo, rezando, implorando que seus entes queridos, caídos ali, voltassem a respirar.

Cadáveres queimados

Eu também gritei. E foi aí que percebi um garotinho caído. O que eu vi ali eclipsou todo o horror que testemunhara até então: cadáveres queimados e em estado de decomposição após os massacres, de mulheres e crianças despedaçadas pelas bombas e balas, os gritos dos meus amigos feridos em combate.

O rostinho do menino adquirira tons grotescos de vermelho, amarelo e azul. Seus olhos estavam vítreos. Uma espuma branca escorria de sua boca. Sua garganta raspava, tentando respirar. Abri a camisa dele e tentei soprar algum ar em seus pulmões. Comprimi seu peito para tentar bombear o veneno branco para fora. Nada parecia ajudar.

Depois de dois ou três minutos, Alm Dar chegou, o Range Rover lotado de mulheres e crianças feridas. Dirigiu o olhar vazio ao garoto, voltou-se para o automóvel sobrecarregado, voltou-se de novo para mim. Eu me sentei no porta-malas com o pequeno. Ele ainda lutava para respirar, aquele raspado medonho saindo de sua garganta. Passamos por mais corpos e sobreviventes que gemiam. Eu me agarrei a ele e chorei.

O que eu vi ali eclipsou todo o horror que testemunhara até então: cadáveres queimados e em estado de decomposição após os massacres, de mulheres e crianças despedaçadas pelas bombas e balas

Quando chegamos ao hospital de campanha, a menos de dois quilômetros dali, levantei o menino nos braços. Ele parecia mais pesado que antes. Eu mal conseguia me equilibrar. Usei toda a força que tinha para colocá-lo no chão. Então o mundo começou a piscar, tudo ficou cinzento e o chão veio ao meu encontro.

Acordei para ver um cara me segurando e gritando que eu estava vivo. Ele tinha uma barba escura bem longa, que estava molhada, e olhos vermelhos. Sabia quem era. Ahmad. O amigo com quem morava, Ahmad. Estava em um porão com janelas pequeninas. As pessoas choravam e gritavam, encharcando as vítimas com água, comprimindo seus peitos para tentar revivê-las. O chão estava frio e molhado, coberto de sangue.

Três homens se aproximaram, um segurando uma seringa e os outros, dois baldes. Jogaram água em mim. O médico injetou o líquido claro no meu braço. Sentia muita dor, mas conforme o remédio foi se espalhando por meu organismo, comecei a me sentir mais forte.

Tentei empurrar o trio quando se abaixou para me pegar. “Vamos lá para cima. O ar está começando a ficar tóxico aqui.” Eles me ajudaram a subir uns degraus quebrados e enferrujados em direção ao ar livre.

O rostinho do menino adquirira tons grotescos de vermelho, amarelo e azul. Seus olhos estavam vítreos. Uma espuma branca escorria de sua boca. Sua garganta raspava, tentando respirar. Abri a camisa dele e tentei soprar algum ar em seus pulmões. Comprimi seu peito para tentar bombear o veneno branco para fora. Nada parecia ajudar

O sol estava nascendo. Protegi os olhos de um raio de sol bem vermelho. À minha volta, as pessoas choravam sentadas no chão, tentando reanimar amigos e parentes.

Dei alguns passos até chegar a um ônibus incendiado, parado no meio da rua. O veículo me pareceu familiar; tinha uma lembrança muito nítida de vê-lo em chamas. Parei e olhei à minha volta. Eu conhecia aquele lugar. Estava no hospital de campanha de Moadhamiyeh. Muita gente correu na minha direção para me abraçar. “Deus seja louvado, você está vivo! Kassem, você está vivo!”.

Comecei a reconhecer meus velhos amigos e vizinhos, mas ainda não entendia o que tinha me acontecido. Por que sentia tanto frio? Percebi que estava só de cueca. Queria minhas roupas. “Estão cobertos de água e sarin”, meu amigo Abu Malek dizia. “Assad nos atacou com gás sarin.” Saiu para buscar umas roupas.

Ruínas e bombas

Eu me lembrava de tentar puxar o ar, inalando a lufada mais dolorida da minha vida. Recordei os corpos na rua, o olhar vidrado do garotinho. Abu Malek voltou com a minha jaqueta e um lençol. “Agora você tem que…” uma explosão ensurdecedora o interrompeu, chacoalhando o chão. As forças do regime começaram a atirar em nós com artilharia pesada. Começou a tentativa desesperada de evacuar o hospital.

Um grupo de membros do Exército Livre da Síria passou correndo por mim. Abu Jamal, o jovem combatente que eu conhecia, pediu às pessoas que se protegessem e lutassem. Seu rosto foi ficando cada vez mais vermelho enquanto ia aumentando o som dos gritos. Fiquei olhando fixamente para ele, incapaz de me mexer.

Os motores dos caças do governo rugiam sobre nós. Levantei a cabeça, à procura deles, esperando pelo som das bombas.

Os motores dos caças do governo rugiam sobre nós. Levantei a cabeça, à procura deles, esperando pelo som das bombas. Examinei as ruínas do meu bairro, na esperança de encontrar algo que pudesse me ajudar a compreender o que estava acontecendo.

Alm Dar apareceu e começou a gritar comigo, tentando fazer com que eu me mexesse. Continuava no mesmo lugar, de cueca, os olhos vidrados. Ele me deu um tapa. “Estão tentando invadir?”, perguntei. Ele disse que sim. “Por onde?” “Toda parte!”.

Consegui reunir forças e segui Alm Dar para a linha de frente. Pouco depois, disparei meu primeiro tiro em defesa do meu lar, contra aqueles que tinham tentado nos envenenar.

*Kassem Eid vive em Berlim, onde está escrevendo um livro de memórias sobre a guerra civil na Síria.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]