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Mulher islâmica protesta em Nova York contra ato organizado contra a sharia | KENA BETANCUR/AFP
Mulher islâmica protesta em Nova York contra ato organizado contra a sharia| Foto: KENA BETANCUR/AFP

Uma mesquita na Virgínia condenou publicamente as palavras de seu principal imã, chamando atenção para as persistentes divisões entre líderes muçulmanos sobre a controversa e amplamente condenada prática de mutilação genital. 

O conselho de diretores do Centro Islâmico Dar al-Hijrah em Falls Church, na Virgínia, disse na semana passada que o aparente endosso do imã Shaker Elsayed à prática ilegal como “a coisa honrada a se fazer se necessário” está em desacordo tanto com o direito dos Estados Unidos quanto com a lei islâmica. 

Os comentários de Elsayed durante uma palestra sobre vida familiar e educação dos filhos no mês passado acendeu uma breve controvérsia depois que uma entidade da sociedade civil circulou um vídeo de seu discurso na internet. 

A liberdade religiosa pode justificar a mutilação genital feminina?

A mutilação genital feminina, rotulada de violação de direitos humanos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pela maioria dos governos, é uma prática comum entre certas populações muçulmanas e cristãs da África e parte da Ásia. A prática pode ir de uma pequena incisão ou remoção parcial do clitóris a uma remoção completa do clitóris e dos lábios e a procedimentos de infibulação do canal vaginal que a OMS afirma que podem levar a hemorragias, infecções crônicas, complicações no parto e até mesmo à morte. 

“Hiperssexualmente ativa”

Embora a prática, que às vezes é também chamada de circuncisão feminina, não tenha nenhum fundamento no Alcorão ou na Bíblia, especialistas dizem que é mantida em larga parte devido a afirmações falsas sobre obrigações religiosas e benefícios à saúde, pressões sociais e o desejo de reprimir a sexualidade feminina. 

Em sua palestra, cujo vídeo foi divulgado no canal da mesquita no YouTube, Elsayed falou a respeito da circuncisão como o corte da “ponta da parte sexualmente sensível da garota para que ela não seja hiperssexualmente ativa”.

Ele alertou sobre os perigos de formas mais sérias do procedimento, mas aconselhou os fiéis a buscar a orientação de um ginecologista muçulmano para saberem se é necessário tomar medidas mínimas.

Ele também afirmou que “em sociedades na qual a circuncisão de garotas é completamente proibida, a hiperssexualidade toma conta de toda a sociedade e uma mulher não se satisfaz com uma pessoa, nem duas, nem três.” 

O conselho de diretores de Dar al-Hijrah na segunda-feira (05) disse que rejeitava a opinião de Elsayed, e que a mutilação genital feminina é “proibida no Islã assim como pelo direito americano.” 

“Nós da Dar al-Hijrah, não toleramos, promovemos ou apoiamos qualquer prática de mutilação genital feminina”, o conselho afirmou em um comunicado. “A referência a ‘hiperssexualidade’ é ofensiva e inequivocamente rejeitada. O conselho de diretores está particularmente perturbado por tais comentários.” 

O comunicado também incluía uma retratação de Elsayed, que disse que “orientou o público a procurar seu ginecologista de confiança para que ele os informasse sobre a razão da prática ser perigosa e ilegal” e que se arrependia de seus comentários sobre “hiperssexualidade”. 

“Admito que os deveria ter evitado. Portanto, eu me retrato. E peço desculpas a todos aqueles se sentiram ofendidos por eles”, disse. 

Condenação

Mas alguns membros da comunidade disseram que o comunicado não foi contundente o suficiente, e dois funcionários da mesquita, que falaram sob condição de anonimato, disseram que o segundo imã da mesquita e coordenador de divulgação, Johari Abdul-Malik, estava ameaçando deixar o cargo se o conselho não demitir Elsayed. Ambos Abdul-Malik e Elsayed se recusaram a comentar. Mas Abdul-Malik e outros 20 líderes e intelectuais muçulmanos, incluindo a proeminente ativista Linda Sarsour, divulgaram uma declaração na segunda-feira (05) à noite com clamores para que o conselho “rescinda imediatamente o contrato do imã Shaker Elsayed. Não podemos e não vamos apoiar nenhum imã ou líder muçulmano que endosse abusos de direitos humanos que são antitéticos à nossa linda fé.” 

Embora alguns textos islâmicos clássicos endossem a prática, “é extremamente importante saber que o profeta Maomé e sua família não experimentaram a circuncisão feminina de nenhuma forma”, disse Sunaib Webb, um popular imã do Centro DC, que tem um grande número de seguidores jovens e que apoia o clamor pela demissão de Elsayed. Diversos líderes muçulmanos contemporâneos, inclusive o Grande Mufti do Egito, condenaram a mutilação genital feminina, acrescentou Webb.

“Penso que há uma preocupação legítima de que comentários como esse contribuam para a ideia de que muçulmanos são atrasados e sem contato com a realidade, assim como sua religião.” 

Um membro de longa data da Dar al-Hijrah disse que a controvérsia reflete tensões contínuas entre a ala mais conservadora e a ala mais liberal da liderança da mesquita. “Ele é um cara à moda antiga. Tem visões à moda antiga”, disse o membro, que se preocupa que a permanência de Elsayed na mesquita seja “a gota d’água” para progressistas como Abdul-Malik. Ele pediu para não ser identificado para que pudesse falar francamente. 

Dar al-Hijrah, uma das maiores mesquitas do país, com cerca de três mil fiéis regulares de mais de 20 países, tem buscado há anos lustrar sua imagem, depois de ter sido o foco de escrutínio público e investigações do FBI após o 11 de setembro. Um ex-imã da mesquita, Anwar al-Aulagi, se tornou um dos mais famosos defensores mundiais da ideologia extremista anos depois de ter deixado Dar al-Hijrah. E dois dos homens que sequestraram os aviões do 11 de setembro, ao lado do atirador do Forte Hood, o major Nidal Hassan, todos frequentaram a mesquita em algum momento. 

Liberdade religiosa?

Embora haja pouca indicação de que mutilação genital feminina seja comum nos Estados Unidos, a prática suscitou nova atenção em abril quando procuradores federais acusaram três médicos de Michigan de envolvimento na mutilação genital feminina de duas garotas de Minnesota, o primeiro caso a ser processado sob a proibição que existe há décadas nos Estados Unidos. 

Espera-se que os advogados dos médicos, todos os quais são indiano-americanos e pertencem à minúscula seita Dawoodi Bohra do islamismo xiita, invoquem liberdade religiosa em sua defesa no julgamento que ocorre no fim deste mês, um argumento que provavelmente vai inflamar ainda mais os estereótipos. 

As controvérsias surgem em um momento particularmente difícil para muçulmanos americanos. Crimes de ódio contra muçulmanos chegaram a 67% em 2015, de acordo com o FBI. E crimes de ódio em geral subiram mais de 42% ano passado no condado de Montgomery, em Maryland – a 30 minutos de viagem de Dar al-Hijrah – de acordo com uma análise de dados preliminares de Brian Levin, um especialista em crimes de ódio da Universidade do Estado da Califórnia em San Bernardino. 

Mês passado um supremacista branco, Jeremy Joseph Christian, matou dois homens em um veículo leve sobre trilhos em Portland quando eles intervieram para proteger duas garotas muçulmanas que Christian estava assediando, segundo as autoridades locais. 

Dar al-Hihrah e seus membros – inclusive mulheres e garotas que usam lenços – tem sido alvos de discurso de ódio antimuçulmano, ameaças e, em uma ocasião, violência. 

Depois de o vídeo da palestra de Elsayed ter circulado nas redes sociais, a reação irrompeu no Twitter. 

“Esse é um monstro perdedor que precisa ser exterminado da face da Terra! É disso que nosso maravilhoso presidente está nos salvando!”, escreveu uma pessoa, cujo perfil do Twitter trazia uma imagem do button de campanha de Trump-Pence.

Tradução de Pedro de Castro
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