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Carroceiros fazem um protesto contra a morte do morador de rua Ricardo Silva Nascimento de 38 anos, que trabalhava como catador de materiais recicláveis na região de Pinheiros. A manifestação aconteceu no local do incidente, na Rua Mourato Coelho, zona oeste de São Paulo (SP), no dia 13 de julho. | ANDRE LUCAS/ESTADÃO CONTEÚDO
Carroceiros fazem um protesto contra a morte do morador de rua Ricardo Silva Nascimento de 38 anos, que trabalhava como catador de materiais recicláveis na região de Pinheiros. A manifestação aconteceu no local do incidente, na Rua Mourato Coelho, zona oeste de São Paulo (SP), no dia 13 de julho.| Foto: ANDRE LUCAS/ESTADÃO CONTEÚDO

O caso do carroceiro Ricardo Silva Nascimento, de 39 anos, o Negão, morto após ser baleado por um policial militar, na semana passada, no bairro de Pinheiros, em São Paulo, reacende um debate importante: o valor da vida e da dignidade das pessoas. Negão, que tinha problemas mentais e vivia na rua, teria, segundo a PM, ameaçado um policial com um pedaço de madeira. O caso está sendo investigado pela Corregedoria da PM paulista, gerando questionamentos entre os que acompanharam os desdobramentos da ação. O policial agiu certo ao atirar? Seja qual for a resposta, uma coisa é certa: a vida de qualquer pessoa, não importa a situação, vale muito e isso deve ser considerado pelas forças de segurança pública em sua apuração.

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Toda pessoa, estabelece a Declaração Universal dos Direitos do Homem, é um ser único e digno de respeito, independente de atributos ou características, como sexo, idade, cor e classe social. Todos nascem livres e iguais em dignidade e direitos e essa prerrogativa não pode ser retirada por ninguém: nem pelo Estado ou o consenso social. Isso obviamente vale tanto para o policial como para o carroceiro, é até desnecessário afirmar.

Versões

A versão da polícia é que dois PMs, durante patrulhamento a pé, se depararam com Negão se desentendendo com uma pessoa, próximo a uma pizzaria. O carroceiro teria pedido comida no estabelecimento e se revoltado ao deixar de ser atendido. Após isso, ele teria ido para cima do policial e sido baleado, à queima-roupa. Testemunhas relatam que vizinhos que filmaram a cena teriam sido obrigados pela polícia a apagar as imagens

A confusão envolvendo comida é negada pela própria direção da pizzaria. “Na hora do ocorrido, nós estávamos nos preparando ainda para abrir. Não tinha funcionamento. Só ouvíamos uma discussão vinda de fora”, disse a proprietária da pizzaria, Mariane Mazzoni Calcon, à Gazeta do Povo. A empresária assinala que Negão era bastante conhecido nas redondezas e que nunca causou transtornos na vizinhança. “Ele não costumava pedir nada, tinha seu próprio dinheiro vendendo papelão”, observa. 

Autodefesa 

A PM alega que o policial atirou no peito do carroceiro na tentativa de se defender. Mesmo assim, enquanto a investigação do caso segue na Corregedoria, os envolvidos foram remanejados para o serviço administrativo. “O DHPP também instaurou inquérito, ouviu testemunhas e encaminhou a arma para perícia. A polícia analisa imagens de câmeras da segurança da região e aguarda os laudos periciais”, informou a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo. 

Esse episódio, avalia a pesquisadora Jaqueline Senhoretto, do Grupo de Estudos da Violência e Administração de Conflitos (Gevac), da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR) e assessora do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCRIM), chama atenção para o treinamento recebido por militares no estado e o tipo de força empregada nas ações em que, supostamente, há perigo eminente. “No método Giraldi, usado pelo estado de São Paulo, o policial pode dar dois tiros no tórax do suspeito para se defender numa situação de risco. A questão que não sabemos, no entanto, é se eles estão usando esse método quando poderiam estar agindo com força moderada”, salienta. 

Dimensão do risco 

Jacqueline argumenta que a apuração dessas circunstâncias – se a dimensão delas demandaria apertar o gatilho de uma arma, por exemplo, também encontra dificuldades em avançar porque é desenvolvida pela PM, uma das partes interessadas na situação. Um levantamento feito pelo Gevac, em 2013, mostra que só 4% das mortes envolvendo suspeitos em confronto com a polícia paulista se tornaram objetos de investigação. 

“Com os 96% casos restantes, se partiu do princípio de que o PM usou a força necessária, que seria a letal. De um lado, há uma absolvição sumária e arquivamento dos casos, mas, por outro lado, isso também fica no imaginário da população, que passa a ver como se toda a ação da polícia fosse abusiva”, analisa a socióloga, ao pontuar que, na maior parte dos casos de letalidade em situações policiais, estão envolvidas classes populares e pessoas negras. “Com o Negão, o diferencial é que isso aconteceu em Pinheiros [bairro de classe média de SP], não na periferia”, pondera. 

Preservação da vida

No Paraná, o método Giraldi não é institucionalizado pela PM do estado, embora o treinamento adotado siga referenciais bastante semelhantes, explica o capitão Carlos Alberto Rocha, integrante do Setor de Planejamento da PM-PR. É o caso da preparação do policial para a garantia da aplicação da lei e da preservação da vida da vítima, de terceiros, do PM e do infrator da lei. “É importante salientar, inclusive, que muitos instrutores da PM-PR fizeram o curso para aprender o método Giraldi”, comenta. 

Rocha assinala que, embora seja prematuro julgar a ação da PM de São Paulo, numa ocorrência em que o suspeito está armado apenas com um pedaço de pau e não haja risco iminente à vida de terceiros, o recomendado é usar técnicas defensivas não letais. Entram neste rol o bastão carregado pelos policiais, gás de pimenta e armas de eletro-choque, conhecidas também como tasers. “Mas não pode ser descartado, porém, que um pedaço de pau, a depender do ânimo do agressor, possa representar um risco concreto à vida do policial ou de outras pessoas envolvidas na ocorrência”, pondera. 

Conforme o capitão, o policial, em suas ações, deve observar princípios de conveniência, moderação, necessidade e proporcionalidade, para que o nível da força a ser usada seja compatível com a ameaça enfrentada. “O uso de força letal é uma medida extrema, somente cabível contra uma injusta agressão para a defesa da vida de terceiros ou do próprio PM”, salienta. O oficial reforça que casos de morte envolvendo confronto com policiais são avisados imediatamente ao Ministério Público no estado.

Força progressiva 

Um dos diretores da Associação Nacional dos Praças (Anaspra), o policial militar Emerson Henning sustenta que o ideal é que o uso da força durante uma ocorrência seja progressivo, conforme a dimensão do risco que se apresenta. “Não vai se usar um fuzil quando uma pessoa está desarmada”, comenta. Ainda assim, enfatiza Henning, é importante que o PM pense e aja de forma rápida, para não colocar a vida dele nem a de outra pessoa próxima em perigo. “A primeira missão de um policial é a garantir a vida dele. Se não fizer isso, não tem como ajudar os outros”, reforça. 

O representante da Anaspra argumenta que orientação para mirar o tórax ao atirar para se defender, conforme o método Giraldi, tem uma explicação simples. Com o suspeito em movimento num confronto, essa seria a área mais fácil para acertar e derrubar o alvo, sem, necessariamente, levá-lo a óbito. “Se o policial erra um tiro, pode atingir outras pessoas ou colocar em risco a vida dele. É uma questão técnica. O suspeito não fica parado para que se mire na perna dele”, diz. Isso, enfatiza, é diferente de disparar um tiro contra a cabeça de alguém, o que, admite Henning, poderia representar execução. 

Ser humano 

Henning lamenta que o direito de se defender dos policiais seja visto de forma negativa por parte da população. O praça cita a necessidade de proteção que os próprios policiais demandam no exercício da profissão e a mortalidade à qual a classe também está sujeita, como vem ocorrendo no Rio de Janeiro. “A PM do Rio pode ser a que mais mata, mas é também a que mais morre. As baixas se equiparam a perdas em uma guerra. Em São Paulo, o assaltante está pendido identidade da vítima no roubo. Se vê que é PM, executa na hora”, relata. 

O problema envolvendo a categoria e a opinião pública, avalia, está no fato do policial ser visto apenas como um braço do estado e não como um ser humano que corre riscos ao sair para a rua e é passível de cometer erros. “Os erros de avaliação também são comuns, mas são punidos. Hoje, a polícia é uma das instituições mais vigiadas e a punição chega a ser maior que a de qualquer outra função pública no país”, defende.

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