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Funcionário da United Airlines conversa com passageiro: empresa perdeu grande valor em ações depois do incidente | Joshua Lott/AFP
Funcionário da United Airlines conversa com passageiro: empresa perdeu grande valor em ações depois do incidente| Foto: Joshua Lott/AFP

A companhia aérea americana United Airlines precisava embarcar quatro funcionários em um voo, porém não havia mais lugares disponíveis. Nenhum passageiro aceitou ceder seu assento. A tripulação então escolheu quatro aleatoriamente, mas um deles, um médico de 69 anos, se recusou, sob protesto, alegando que precisava atender pacientes na manhã seguinte. O que veio em seguida foi brutal. Retirado à força, foi arrastado pelo corredor, com o rosto sangrando, e a única reação dos outros passageiros foi a de registrar a cena no celular.

No Kuwait, uma empregada doméstica tentou o suicídio, mas desistiu da ideia. Mesmo assim, ela caiu de uma altura de 20 metros e, pendurada do lado de fora do prédio, segurou-se à janela gritando por socorro. Um vídeo de 12 segundos mostra tudo. Quem filmou? A empregadora, que não moveu um dedo para ajudar.

Registrar o momento sem fazer nada e mesmo assim se chocar com a repercussão nas redes sociais parece contraditório. O que estaria por trás deste comportamento? Seriam indiferença e egoísmo condições inatas a todos os humanos?

Instinto x escolha

Por mais contraditório que possa parecer, para a ciência o altruísmo se aproxima de um instinto natural — já o egoísmo, este sim, é uma questão de escolha. “A maioria das pessoas acredita que somos instintivamente egoístas, mas nossos experimentos mostram que, quando dependemos de instintos, somos mais cooperativos”, argumenta o psicólogo David Rand, da Universidade de Yale, em entrevista ao site Science of Us, da New York Magazine.

Autor de um estudo chamado “Risking Your Life without a Second Thought: Intuitive Decision-Making and Extreme Altruism” (“Arriscando sua vida sem pensar duas vezes: tomada de decisão intuitiva e altruísmo extremo”, em tradução livre), Rand acrescenta que o egoísmo surge após reflexão, enquanto a reação instintiva tende a apontar para o altruísmo.

Os estudos de Rand são complementados por uma análise do próprio autor com vencedores da “Carnegie Hero Medal” – premiação americana para atos de heroísmo civil. David constatou que aquelas pessoas agiam instintivamente ganhavam mais prêmios.

Como Kermit Kubitz, um advogado de 60 anos que interveio quando uma jovem de 14 anos de idade era esfaqueada em uma padaria. “Só havia dois pensamentos: preciso levar esse homem para fora e ‘Meu Deus, esse cara pode me matar’”, disse Kubitz, que acabou com as costelas esfaqueadas. “Creio que foi instinto, meio que uma tendência própria: ninguém será atacado sem que eu faça algo. Se fosse minha filha, você faria isso por mim, você faria isso na hora. E eu faria por você”, completou.

Egoísmo e altruísmo

Em “O Gene Egoísta”, o biólogo Richard Dawkins apresenta uma nova perspectiva à teoria evolucionista: o organismo é uma máquina de sobrevivência do gene, logo é preciso também considerar este ponto de vista. “A teoria dos genes egoístas é, de fato, a respeito de genes egoístas, e não sobre indivíduos egoístas”, explica Dawkins.

Para ele, em determinadas situações, genes egoístas podem levar animais a serem egoístas, mas também levá-los ao altruísmo. “Muitos humanos fazem coisas que um darwinista ortodoxo condenaria: quando doamos dinheiro, ou sangue, ou cuidamos de animais. Todos esses atos de empatia remetem à seleção dos genes egoístas”, diz.

Inércia social

No início da década de 60, os também psicólogos Bibb Latané e John Darley, buscaram compreender quais condições levavam pessoas comuns a ignorar pedidos de ajuda – claros ou implícitos. Para eles, o poder da situação em que o indivíduo se encontra tinha um papel mais preponderante do que sua personalidade.

John e Bibb realizaram algumas experiências, em sua essência, bastante simples: eram simuladas situações de emergência em ambientes controlados e então se observavam as reações individuais e em grupo. Resultaram naquilo que hoje conhecemos como Efeito do Espectador (bystander effect) ou Apatia do Espectador (bystander apathy).

Produtos do meio

Para Marina Pires Alves Machado, mestre em Psicologia pela UFPR e coordenadora do curso de Psicologia da Universidade Positivo (UP), há uma tendência a se ambientar com o trágico, que nos torna indiferentes e por isso não reagimos a acontecimentos como o episódio envolvendo o vôo da United Airlines ou a tentativa de suicídio no Kuwait: “Quando estamos frente a frente com algo assim, tendemos a travar, a não ter reação alguma”.

Os exemplos, aliás, corroboram o conceito criado por Latané e Darley: a facilidade com que se divulga informação aumenta a inércia social e a difusão da responsabilidade, afinal gera na pessoa que difunde a informação a sensação de que já fez a sua parte e que “alguém” tomará as devidas providências.

“Além disso, como no caso da senhora que estava pendurada no prédio, há mesmo uma glamorização das redes sociais, que faz com que as pessoas vivam mais o mundo virtual do que suas próprias vidas: o número de curtidas e visualizações que um vídeo desses traz dá visibilidade a quem postou, fazendo com que a pessoa se sinta bem, apesar de não ter ajudado quem precisava”, completa Marina.

Perspectiva filosófica

Já a filosofia debate o egoísmo humano há séculos sem nunca chegar a um consenso. trata-se de um fenômeno histórico ou universal?

Uma corrente de pensamento, iniciada por Aristóteles, opõe a “natureza” humana ao não-humano, o animal. Por isso, episódios de extrema violência são associados a algo “animalesco” – nossa racionalidade, porém, nos capacita a estabelecermos uma distância desses comportamentos.

“Adriana Cavarero, filósofa italiana, argumenta que ao invés de opor nosso comportamento ao não-humano, deveríamos pensar essa dicotomia em termos de humano/inumano, no qual o inumano não é o que é animalesco, mas o que nega a nossa humanidade. Não é, portanto, uma natureza, mas uma condição”, explica Daniel Medeiros, doutor em Educação Histórica pela UFPR.

Daniel diz que não se trata de mero egoísmo, mas também da forma como deixamos de pensar o outro como um indivíduo singular e diferente de nós. “Hannah Arendt acreditava que a especificidade do humano está relacionada à nossa exposição ao outro, o que nos torna vulneráveis a este olhar. Se alguém ignora nossa humanidade, expõe-nos à sua violência. E há muitas formas de ignorarmos a humanidade de alguém”, afirma. “Não se trata algo atribuível a um gene ou a uma falha da educação. Trata-se de um cenário ao qual estamos expostos e vulneráveis o tempo todo, porque essa é a nossa condição de humanos: somos vítimas potenciais e agentes potenciais de violência”.

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