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| Foto: Ivonaldo Alexandre/Gazeta do Povo/Arquivo

Recentemente, o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, afirmou que “a pena de morte não tem lugar no século 21”, pedindo que os países que ainda mantêm a prática a proíbam com urgência. Para Guterres, as nações que adotam esse tipo de punição não cumprem as obrigações internacionais relacionadas aos direitos humanos. O Brasil, embora tenha abolido a pena capital, prevê uma exceção. 

Provavelmente a disposição mais famosa da Constituição Federal (CF), o artigo 5º prevê uma série de garantias aos cidadãos brasileiros, do direito à vida ao direito de propriedade. O texto também assegura que não haverá pena de morte, a não ser em caso de guerra externa declarada. Ocorre que a própria CF estabelece que compete, exclusivamente, ao presidente da República declarar o conflito, autorizado ou referendado pelo Congresso Nacional. Nesse sentido, uma guerra civil não justificaria a aplicação da pena capital por parte do Estado, pois o confronto precisaria ser decretado pelas autoridades, de forma oficial.

Se a situação fosse confirmada, seria preciso recorrer ao Código Penal Militar, que regula a pena de morte. De acordo com a legislação, estão passíveis de serem punidos com a vida crimes como traição, motim, revolta ou conspiração e espionagem, sendo que a execução deve se dar por meio de fuzilamento.

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Em entrevista anterior ao Justiça, no entanto, a professora de Direito Constitucional de Direitos Humanos Heloisa Camara lembrou que, quando o assunto é pena de morte, não se deve analisar somente a Constituição da República, mas também a Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica. Embora seja de 1969, o Brasil se tornou signatário da convenção somente em 1992.

O texto prevê uma série de regras relativas à pena capital, como a impossibilidade de se restabelecer a punição em Estados que já a tenham abolido, bem como que “em nenhum caso pode a pena de morte ser aplicada por delitos políticos, nem por delitos comuns conexos com delitos políticos”. Nesse sentido, excetuada a situação de guerra externa, dificilmente esse tipo de pena voltaria a ser aplicada, ainda que houvesse clamor popular em torno da questão. 

Na mesma ocasião, o jurista Luiz Flávio Gomes ressaltou ao Justiça que mesmo no caso hipotético de uma guerra deveria ser observada a proporcionalidade da pena de morte. Não seria plausível, por exemplo, uma pessoa ser considerada traidora por trocar e-mails com conteúdo de oposição ao governo e por isso receber a penalidade mais extrema.

Histórico da pena de morte no Brasil 

Professor de História do Direito e host do podcast Salvo Melhor Juízo, Thiago Hansen explica que no período colonial, quando o diploma penal vigente era o Livro V das Ordenações Filipinas, vários crimes tinham a pena de morte como punição, independentemente de terem sido cometidos por militares ou civis como o homicídio, a não ser que fosse praticado em legítima defesa. Segundo Hansen, esse “Código Penal” da época, que perdurou por mais de 200 anos no Brasil, “fez má-fama na Europa em virtude da profunda crueldade presente em seus artigos, recebendo o apelido de ‘livro terrível’ pelos juristas europeus do período”.

Não era incomum, no entanto, que as penas acabassem convertidas em outros tipos de punição, como as galés, espécie de banimento, pelo instituto da graça. “Era uma forma de flexibilizar a punição através de um pedido ao rei, que acabava por fazê-lo em nome da misericórdia e de valores católicos que constituíam a cola social daquele vasto Império”, afirma o professor. 

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A pena de morte para crimes comuns se manteve no Código Criminal do Império mesmo após a Independência do Brasil, e era aplicada pelo Júri de Sentença, influência do modelo francês. Muitas vezes, porém, os julgamentos eram tramados por elites políticas locais que os utilizavam como instrumento de vingança contra inimigos específicos.

Diz-se que o estopim para que cessasse a aplicação da pena de morte foi o caso do Manoel da Motta Coqueiro, fazendeiro da região de Campos dos Goytacazes (RJ) condenado por mandar matar a família de colonos que trabalhava em uma de suas propriedades. Coqueiro chegou a pedir clemência a Dom Pedro II, mas o imperador negou-lhe a graça imperial. Após sua morte por enforcamento, em 1855, surgiram vários indícios de que o fazendeiro era inocente. A partir daí, o imperador passou a converter a pena de morte em penas de outra espécie, como ocorria no período colonial. 

Mas a pena capital continuou a ser aplicada contra escravos, com base numa lei específica de 1835. O texto dizia que seria condenado à morte o escravo que matasse ou ferisse gravemente seu senhor ou qualquer membro da família dele. A última execução ocorreu em 1876 e na primeira Constituição republicana, de 1891, a pena de morte foi formalmente abolida, com exceção aos crimes cometidos por militares em período de guerra. 

O professor ressalta, entretanto, que apesar da abolição formal, a aplicação marginal da pena “se manteve em eventos muito conhecidos, como na Guerra de Canudos, na Revolta Federalista e em situações de indisciplina militar, como a morte por envenenamento dos marinheiros que participaram da Revolta da Chibata, em 1910”.

Ditaduras

Constituição de 1937, vigente durante o Estado Novo (1937-1945), englobando o período em que o país se encontrava em guerra contra o Eixo, expandiu a pena de morte para crimes não militares, como atentar contra a vida do presidente ou praticar homicídio por motivo fútil.

Na ditadura militar, a pena de morte estava prevista na Lei de Segurança Nacional de 1969 e no Ato Institucional n. 14 (AI-14), que previa que ela poderia ser aplicada em caso de “guerra externa, revolucionária ou subversiva”, bem como em casos de participação em atos terroristas que resultassem em morte. Tanto a Lei de Segurança quanto os atos institucionais foram revogados em 1978.

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O único condenado à morte durante a ditadura militar foi o jovem Theodomiro Romeiro dos Santos, em 1971, por assassinar um sargento da Aeronáutica em Salvador (BA). Ele foi sentenciado ao fuzilamento. O Superior Tribunal Militar (STM), porém, reformou a sentença e comutou-a em prisão perpétua, sob a justificativa de que o réu era menor de idade à época do crime, quando tinha 17 anos. Em 1979, ele fugiu da prisão e só retornou ao Brasil em 1985, com o restabelecimento da democracia. Atualmente, é juiz aposentado do trabalho em Pernambuco. 

Conheça a lei 

Constituição Federal 

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: 

(...) 

XLVII - não haverá penas: 

a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; 

(...) 

Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: 

XIX - declarar guerra, no caso de agressão estrangeira, autorizado pelo Congresso Nacional ou referendado por ele, quando ocorrida no intervalo das sessões legislativas, e, nas mesmas condições, decretar, total ou parcialmente, a mobilização nacional; 

Código Penal Militar 

Art. 55. As penas principais são: 

a) morte; 

(...) 

Art. 56. A pena de morte é executada por fuzilamento. 

Art. 57. A sentença definitiva de condenação à morte é comunicada, logo que passe em julgado, ao Presidente da República, e não pode ser executada senão depois de sete dias após a comunicação. 

Parágrafo único. Se a pena é imposta em zona de operações de guerra, pode ser imediatamente executada, quando o exigir o interêsse da ordem e da disciplina militares.

Linha editorial 

Conheça melhor o posicionamento da Gazeta do Povo a respeito da pena de morte: 

“A violência nos grandes centros é um problema sério, a ponto de alterar os hábitos das pessoas – em São Paulo, por exemplo, a ida a um restaurante pode terminar em arrastão. A vida humana é cada vez mais desrespeitada pelos bandidos, que matam por praticamente nada (...).A pena capital, no entanto, não é a solução; muito mais eficientes seriam o fim da impunidade, a celeridade na Justiça e a adoção de penas proporcionais à gravidade dos crimes – até porque, quando as punições são desproporcionais, a tendência é de que sejam pouco aplicadas.” [Leia mais]

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Colaborou: Mariana Balan.

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