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Refugiado do Afeganistão carrega um bebê em Lesbos, Grécia | Soeren Bidstrup/Getty Images
Refugiado do Afeganistão carrega um bebê em Lesbos, Grécia| Foto: Soeren Bidstrup/Getty Images

Em 11 de junho, os corpos de 18 migrantes africanos foram encontrados no Saara. Segundo Giuseppe Loprete, chefe da missão da Organização Internacional para Migração no Níger, eles tinham morrido mais de uma semana antes, provavelmente de desidratação. Apanhados por uma tempestade de areia entre Arlit, no Níger, e a Argélia, eles se perderam, segundo Loprete, e “o calor e a falta de água fizeram o resto”.

Alguns dias depois, os despojos de mais 30 migrantes foram descobertos no deserto.

Essas tristes notícias não chegaram às primeiras páginas dos jornais europeus: o continente está ocupado demais com a onda de migrantes em suas fronteiras meridionais para dar atenção a 48 africanos infelizes. Ninguém aqui verá esses corpos. Ninguém contará suas histórias. Essa tragédia particular permanecerá africana.

A outra tragédia, o drama de centenas de milhares de pessoas que arriscam suas vidas no Mediterrâneo, é hoje uma história europeia. E, embora ela se desenrole diante de nossos olhos, não temos uma ideia clara do que fazer.

Sabíamos que isso ia acontecer.

Um ano atrás, o Alto Comissariado da ONU para Refugiados publicou estatísticas surpreendentes: no final de 2013, o mundo tinha 51,2 milhões de pessoas desalojadas —6 milhões a mais que no ano anterior. Recentemente, a agência disse que o número de refugiados subiu para 59,5 milhões em 2014. Isso é histórico: desde o fim da Segunda Guerra Mundial, um número tão grande de pessoas não era tirado de sua terra contra sua vontade.

Ainda assim, o número de 2013 passou quase despercebido. Milhões de sírios já tinham fugido de seu país e se refugiado no Líbano, na Jordânia e na Turquia.

As dificuldades da vida familiar nos campos de refugiados não estavam nas telas de nossos radares nem nas de nossas TVs. Quando refugiados de locais distantes como o Afeganistão chegaram à União Europeia pela Turquia, Grécia e Bulgária, construímos muros e selamos fronteiras.

Depois, na primavera, tudo mudou. Ao encontrar as fronteiras terrestres bloqueadas, os refugiados seguiram por mar. Arrasada e frustrada pela falta de solidariedade europeia, a Itália encerrou sua missão no Mediterrâneo em dezembro. De repente, a tragédia humana estava lá para todos os europeus verem: barcos dilapidados virando todos os dias; refugiados afogando-se às centenas. Neste ano, pelo menos 1.868 pessoas já morreram ou desapareceram no Mediterrâneo, comparado a 448 no mesmo período do ano passado. Obrigados a fazer alguma coisa, os membros da União Europeia enviaram alguns navios para ajudar na crise.

Mas e depois? Os que alcançaram terra firme vivos hoje enfrentam o terceiro ato da tragédia —sendo o primeiro ato a etapa inicial da longa viagem desde seu país, antes de alcançarem o mar.

A ilha grega de Lesbos e a italiana de Lampedusa estão lotadas de migrantes. Os refugiados querem ir para o norte, mas ninguém os deseja.

Com o verão, a vida deles passa do caótico ao surreal, com europeus bem alimentados lotando as praias do Mediterrâneo. A polícia francesa empurra os migrantes de volta à Itália. Dezenas de famílias dormem no chão na estação ferroviária de Ventimiglia [fronteira italiana]. Em Nice, migrantes sem documentos são impedidos de embarcar em trens para Paris. Na Cidade Luz, a polícia desmonta acampamentos improvisados de migrantes africanos, só para encontrá-los cheios de recém-chegados no dia seguinte. A população local e grupos de ajuda os alimentam e vestem, apesar de Marine Le Pen, a líder da Frente Nacional, exigir que não lhes deem “nem abrigo nem tratamento médico”.

A cidade de Calais, última etapa antes do canal da Mancha, hoje tem uma “selva”: um acampamento com cerca de 3.000 de migrantes que, desesperados, tentam saltar nos caminhões que rumam para o Reino Unido.

O continente é hoje o primeiro destino dos migrantes do mundo.

No ano passado, 626 mil pessoas pediram asilo na Europa, um aumento de 45% em relação a 2013. (A América do Norte também registrou um aumento de 42%, mas lida com números bem menores: 134.600 pediram asilo.)

Os números provocaram uma reação populista e anti-imigrantes entre eleitores de toda a Europa.

Complicando ainda mais o quadro, a diferença entre os refugiados que fogem da guerra ou de perseguição e os migrantes econômicos se dissipou, pois os últimos sofrem graves violações em suas odisseias, especialmente nas mãos dos traficantes na Líbia.

Diante dessa crise em rápida expansão, a UE reagiu como faz com frequência: lentamente, prejudicada pela falta de uma política comum de imigração e asilo.

Alguns líderes em Bruxelas parecem ter compreendido a dimensão desse movimento de pessoas e os desafios que isso coloca para a identidade europeia, assim como para seus ideais de solidariedade e valores humanos compartilhados.

Em maio, a Comissão Europeia apresentou tardiamente uma “Agenda Europeia sobre Migração”, que pedia aos membros da união que partilhassem 40 mil refugiados, conforme cotas predeterminadas. A ideia de cotas foi rapidamente rejeitada por vários países, incluindo a França e alguns países centro-europeus.

Agora, Bruxelas fala em um esquema de relocação baseado na noção mais palatável de “chave de distribuição”, que define os critérios sob os quais os países-membros absorverão os migrantes.

Algumas propostas da comissão são passos positivos na direção certa, mas a maior parte de sua agenda continua concentrada em evitar que as pessoas venham para a UE, para começar.

Essa onda humana não pode ser contida. A mera natureza dos conflitos que assolam partes da África e do Oriente Médio, juntamente com a poderosa dinâmica demográfica da África, significa que a migração será uma característica europeia por muitos anos à frente. Essa é uma situação excepcional, que exige uma resposta excepcional.

Especialistas sabem que as soluções existem, mas mudar o discurso político sobre imigração exige coragem e visão de longo prazo, algo que não é muito comum hoje em dia.

Talvez os líderes europeus possam lembrar um trágico precedente. Em julho de 1938, o presidente dos EUA, Franklin D. Roosevelt, convocou a conferência de Évian para abordar a dificuldade de centenas de milhares de judeus alemães e austríacos desesperados por encontrar refúgio depois que Hitler os expulsou.

Como escreveu no final de maio o alto comissário para Direitos Humanos da ONU, Zeid Ra’ad Al Hussein: “A conferência de Évian foi uma catástrofe. (...) O resultado da reunião foi claro: a Europa, a América do Norte e a Austrália não aceitariam números significativos desses refugiados. No registro literal, duas palavras se repetiram: ‘densidade’ e ‘saturação’.”

Que essa catástrofe não se repita.

Sylvie Kauffmann é diretora-editorial e ex-editora-chefe do jornal francês “Le Monde”.

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