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No final de junho, o sistema de justiça criminal do Egito, conhecido por seu acúmulo de processos em atraso, encontrou tempo para tentar condenar Reda al-Fouly por incitação à libertinagem. Menos de um mês depois, duas outras mulheres foram detidas enquanto eram investigadas pela mesma acusação.

As três mulheres são dançarinas do ventre cujo suposto crime foi dançar em ví­deos imorais que podem ser vistos no YouTube.

A verdade é que elas dançavam em trajes que revelavam boa parte de suas pernas, em vídeos que, para ser acessados, precisam ser buscados ativamente. No entanto, no Egito e em boa parte do Oriente Médio, incitação à libertinagem é como a violação da segurança nacional, abrangente e flexí­vel o suficiente para ser usada contra uma grande gama de opositores morais e que é brandida para unir as pessoas, independentemente de suas posições polí­ticas, em um sentimento farisaico de indignação moral.

Alguns casos recentes no Egito, no Sudão e no Marrocos servem para lembrar que mulheres e homens gays são alvos frequentes.

No dia depois de Fouly ser sentenciada a um ano de prisão (pena posteriormente reduzida para seis meses), o procurador-geral do Egito foi assassinado por um carro-bomba. Então, em julho, insurgentes da região do Sinai promoveram uma série de ataques contra forças de segurança. Agora, o presidente Abdel Fattah el-Sissi promulgou uma lei de contraterrorismo que inclui uma medida controversa que proíbe jornalistas de divulgarem qualquer coisa sobre ataques de militantes que difira da versão oficial.

Em vista desse pano de fundo de uma crise de segurança, o regime egí­pcio, apoiado pelos militares, e seus adversários, militantes armados, travam uma luta mortal que envolve prisões arbitrárias, julgamentos falsos, atentados a bomba e assassinatos. Ví­deos exibidos no YouTube de dançarinas do ventre não são o que nos vêm à mente como exemplos rematados de incitamento perigoso. Mas, em vez de arquivar os processos contra as dançarinas, tachando-os de um desperdí­cio de tempo e dinheiro, os tribunais os julgaram.

A verdade que o Egito não é o único país de maioria muçulmana da região obcecado com o policiamento do corpo feminino.

No vizinho Sudão, em junho, dez estudantes e mulheres na faixa dos 17 aos 23 foram acusadas de usar trajes indecentes em Cartum. Vindas da região dos montes Nuba, onde é travada uma guerra civil, todas as mulheres usavam camisas de mangas longas e saias ou calças, uma vestimenta usual de cristãs em sua região, Kordofan Sul. Se forem condenadas, podem ser sentenciadas a 40 chibatadas.

O artigo 152 do código criminal do Sudão permite que a “polí­cia da moralidade” sudanesa castigue mulheres por andarem sem véu ou mesmo por usar calças compridas. Essas leis são geradoras de divisões sociais: as sudanesas de origem mais rica ou que tenham conexões polí­ticas muitas vezes podem escapar de serem açoitadas, apenas pagando uma multa. As mulheres de origem humilde são castigadas.

O Marrocos, uma monarquia com governo islâmico eleito, vem se alternando entre posições sociais relativamente progressistas e a adesão rígida às leis de moralidade em seu código penal. Às vezes, a motivação parece ser de cunho polí­tico. Em abril, Hicham Mansouri, ativista de uma organização que apoia o jornalismo investigativo, foi sentenciado a dez meses de prisão por adultério. A mulher que teria sido sua parceira contou ao tribunal que estava separada de seu marido, mas recebeu sentença semelhante. Os defensores de Mansouri dizem que as prisões foram uma retaliação pelo fato de Mansouri ter investigado a espionagem cometida pelo Estado.

Mas o Marrocos também vem sendo um antídoto bem-vindo aos perigos das leis de moralidade.

Em julho, duas marroquinas foram absolvidas da acusação de indecência agravada por usarem saias supostamente leves ou justas demais. Elas foram presas em Agadir depois de ser denunciadas por lojistas que as tinham molestado e podiam ser punidas com até dois anos de prisão. As acusações desencadearam uma reação nacional de rejeição.

Centenas de advogados se ofereceram para defender as mulheres, mais de 27 mil marroquinos assinaram uma petição pedindo a libertação delas e outros milhares fizeram manifestações em Agadir e Casablanca.

Em um tempo em que assassinos decapitam, estupram e escravizam sexualmente em nome de seu autodeclarado Estado Islâmico, seria de se imaginar que decotes e a altura de saias não ocupariam lugar tão destacado na lista de ultrajes morais no Oriente Médio.

Mas seria engano pensar que apenas movimentos islâmicos como a Irmandade Muçulmana são obcecados com a moralidade.

Regimes nominalmente seculares muitas vezes superam os conservadores religiosos na disputa da suposta decência. Grupos de direitos humanos dizem que o regime egípcio atual promove a mais dura repressão da comunidade gay desde a era de Mubarak, muito pior do que qualquer coisa que aconteceu sob a égide do presidente Mohamed Mursi, da Irmandade Muçulmana, no ano em que ele esteve no poder.

A lição a ser tirada é que a “política da respeitabilidade” possui o poder de unir tanto regimes militares quanto fanáticos religiosos.

Teremos liberdade real apenas quando a moral e a decência não dependam mais de se policiar o comprimento da saia de uma mulher, de serem criminalizados os ví­deos sugestivos ou de grupos vulneráveis serem encurralados com acusações de “libertinagem”. O que é mais indecente: torturas, decapitações, carros-bomba e encarceramento em massa, ou um vislumbre da pele de uma mulher?

Mona Eltahawy é autora de “Headscarves and Hymens: Why the Middle East Needs a Sexual Revolution” (Lenços de cabeça e himens: por que o Oriente Médio precisa de uma revolução sexual) e de artigos de opinião.

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