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Roseana participa da ajuda humanitária em Cité Soleil, uma das favelas de Porto Príncipe, no último domingo | Fotos: Arquivo pessoal
Roseana participa da ajuda humanitária em Cité Soleil, uma das favelas de Porto Príncipe, no último domingo| Foto: Fotos: Arquivo pessoal

Perfil

Escoteira, aluna do Ginásio Tiradentes e fã de Star Wars

O piercing dourado no nariz, os cabelos longos e bem cuidados, a pele morena e o sorriso largo de dentes impecáveis dão um ar jovial a Roseana Aben-Athar Kipman. Fotos de seus álbuns pessoais e as centenas de amigos que mantém em redes sociais na internet dão uma pista de sua personalidade irreverente.

Falante e muito ativa, Roseana não é do tipo que se nega a trabalho pesado. Embora se apresente muito bem arrumada e perfumada, ela está sempre pronta para ajudar – provável herança de seu tempo de escoteira em Curitiba. Aliás, deve vir daí outra característica marcante da embaixatriz brasileira: ordem e disciplina.

A disciplina, conta, foi desenvolvida com o tempo. Quando criança e adolescente, não era das mais obedientes. "Estudei em muitos colégios, fui expulsa de alguns e a minha escola de paixão foi o Ginásio Tiradentes, que funcionava em uma casa meio podre em frente do Homem Nu", conta ela, referindo-se à Praça 19 de Dezembro, no centro da cidade. Estudou sempre em escolas públicas e se formou em História Natural pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Roseana é o tipo de mulher que sempre tem alguma história para contar. E foi assim desde seu primeiro dia de vida. "Nasci em Curitiba em uma fria manhã de 16 de fevereiro, dentro do táxi que levava a minha mãe para o hospital militar", diz. "Meu adorado pai sempre dizia que o primeiro prejuízo que lhe dei foi estragar o paletó do terno em que ele me acolheu."

A excentricidade de Roseana não pára por aí. Ela é apontada por sites especializados como uma das maiores experts em Star Wars (Guerra nas Estrelas) do mundo. É a única pessoa no Brasil a ter todos os 180 livros do chamado universo expandido de Star Wars, histórias paralelas aos seis filmes da série de ficção científica, uma de suas paixões.

Entre os escombros deixados pelo terremoto que devastou o Haiti, uma paranaense de 60 anos e pouco mais de 1,5 metro de altura en­­trou para a história. Roseana Aben Athar Kipman, esposa do embaixador do Brasil no Haiti, Igor Kip­­man, encontrou e carregou no colo o corpo da médica Zilda Arns, fundadora da Pastoral da Criança, morta no tremor que arrasou o país, deixou 200 mil mortos e 1 milhão de desabrigados. Ela caminhou oito quilômetros, entre mortos, gritos de sobreviventes e prédios caídos, até chegar à igreja onde Zilda estava – uma mostra da coragem e disposição da embaixatriz brasileira.

Em tese, o papel de esposa de embaixador se resumiria a acompanhar o marido em eventos di­­plomáticos e assumir uma ou ou­­tra tarefa social. Relatos feitos por Roseana e por quem a conhece mostram, porém, que ela assumiu um papel muito maior. Boletins do Ministério da Defesa relatam a participação dela em reuniões estratégicas, como a que definiu o plano emergencial de socorro ao Haiti, dois dias depois do terremoto. Na última quarta-feira, a em­­baixatriz – que é neta de judeu – foi citada pelo presidente Lula em cerimônia referente ao Dia Internacional de Lembrança das Vítimas do Holocausto, em Recife. "Ao aconchegar crianças feridas e, em muitos momentos, até mesmo expor sua vida para salvá-las, Ro­­seana expressa o papel que a nossa presença no Haiti tem desde antes do terremoto: compaixão, solidariedade e convicção de que os haitianos podem um dia erguer uma nação que eles mesmos sustentarão", disse Lula.

O envolvimento de Roseana com o povo haitiano supera o formalismo do papel diplomático. Assim como o embaixador, ela se revela uma apaixonada pelo trabalho, sentimento reforçado pela ânsia de reconstrução após a tragédia de 12 de janeiro. O terremoto destruiu casas, mas não os planos desse casal paranaense, convicto da importância da participação brasileira na recuperação do país caribenho.

Foi justamente o compromisso com os haitianos que fez com que Roseana estivesse em Porto Prín­­cipe no dia 12. Na véspera, ela deixou o marido em Brasília, em férias, e embarcou para o Haiti pa­­ra retomar suas aulas de português. Só entrou em sala de aula, porém, duas semanas depois. Na­­quele dia de reinício das aulas, a terra tremeu. "Foi uma coisa in­­ten­­sa e muito longa para os meus sentidos, mesmo que a ciência diga que foram poucos segundos", relata a curitibana, formada em História Natural pela Univer­­sidade Federal do Paraná (UFPR), mãe de três filhos e avó de três netos.

Em entrevista exclusiva por e-mail à Gazeta do Povo, ela conta como foram os primeiros momentos da tragédia. Roseana fala sobre sua relação com o país onde mora desde 2008, quando Igor Kipman – com quem é casada há 35 anos – foi nomeado embaixador.

Zilda Arns

"Por um acaso estávamos no mesmo avião que nos trazia de Miami a Porto Príncipe, em 11 de janeiro. Eu a cumprimentei, me apresentei e me ofereci para fazê-la passar comigo pela parte VIP do confuso aeroporto local e para levá-la até o endereço da irmã Gló­­ria, uma colombiana, responsável pelo convite. Dona Zilda me deu um livro sobre a Pastoral com uma generosa dedicatória. Ficou combinado que na sexta-feira eu iria buscá-la para visitarmos a favela de Cité Soleil."

O tremor

"O terremoto acorreu poucos mi­­nutos antes das 17 horas, quando estava no Centro de Estudos para dar a minha aula. Foi uma coisa in­­tensa e muito longa para os meus sentidos, mesmo que a ciência diga que foram poucos segundos! Os dois muros que cercam o Cen­­tro caíram. Logo chegaram dois de meus alunos e os diplomatas e funcionários da Embaixada Bra­­sileira, que fica perto... só en­­tão me dei conta da intensidade do fenômeno."

Casa

"As ruas estavam bloqueadas de entulhos, pedras e árvores e eu vol­­tei a pé para casa, protegida por quatro dos meus anjos da guar­­da (em referência aos fuzileiros que trabalham na segurança da em­­baixada). Minha sandália arreben­­tou nas primeiras quadras e fiz o percurso descalça. Ao chegar em casa descobri que estávamos sem luz ou água. Os geradores fo­­ram mo­­vimentados pela força do terre­­moto e arrebentaram suas li­­ga­­ções. Toda a louça havia caído no chão e quebrado, a maioria dos qua­­dros estava no chão, todos os armários tiveram as portas e gavetas abertas e todas as pilhas de rou­­pa foram para o chão. Minha bi­­blio­­teca de ferro e com mais de 2.000 livros estava também no chão. E a coisa mais incrível é que as ge­­ladeiras andaram até o meio da co­­zinha, se desligando das to­­ma­­das."

Militares mortos

"Deixei meu gato (que tem 18 anos) em lugar seguro e fui até o Bata­­lhão, onde há 1.300 brasileiros. Precisava saber como estavam. À medida que descíamos o morro, percebemos o tamanho dos estragos e a quantidade de mortos, bem como de pessoas presas nos es­­com­­bros e pedindo socorro. Ao che­­gar ao BraBatt (Batalhão Brasileiro) soube da morte de dez dos nossos militares e da grande tragédia que havia sido causada à Minustah (si­­gla em francês para Missão das Na­­ções Unidas para Estabilização do Haiti). Veio uma freira chorando, me abraçou e comunicou a mor­­te da dona Zilda."

A busca

"Fomos ao local. No caminho, mui­­tas pessoas na rua, muitos corpos já sendo queimados e grande quan­­tidade de destroços. Su­­bimos na escuridão cerca de oito quilômetros de uma montanha, marcamos o local com o GPS e ficamos de voltar de manhã para resgatar o corpo de dona Zilda, soterrado pelos três andares do prédio. No caminho resgatamos seis freiras, algumas feridas. No outro dia tive a sorte de encontrar o padre que con­­versava com dona Zilda e ele me disse exatamente onde estavam naquela hora... ele deu um passo para trás e ela deu um passo para o lado, na varanda do terceiro an­­dar, a primeira a cair, foi atingida na cabeça por concreto e teve mor­­te instantânea e indolor. Foi fácil achá-la. Com um pequeno ins­­tru­­mento pneumático e a força de al­­guns homens, a primeira laje foi levantada e jogada para frente. Em questão de mi­­nutos estava livre e a levamos pa­­ra o Bra­­Batt. Ela foi no meu colo, enrolada nos pa­­nos que cobriam os altares da igreja. Eu mesma os retirei. As­­sim saiu do­­na Zilda: en­­rolada em pa­­nos sa­­grados, com um rosto sereno e sem nenhuma machucadura no corpo, a não ser um pe­­queno filete de sangue, já coagulado, na cabeça."

Haitianos

"O povo tem se comportado de forma exemplar e começa a se or­­ganizar. Desde o terceiro dia já se viam as mulheres na rua vendendo frutas e verduras. Panificadoras voltaram a funcionar e é pelos bairros que tenho comprado o de­­licioso pão que se come aqui em casa. No fim da semana passada, agências de bancos abriram e o dinheiro voltou a circular. Postos vendem gasolina e diesel sem restrição. Alguns produtos estão mais caros. O povo haitiano vai sair deste horror em que a natureza nos colocou."

Corpos queimados

"Alguns jornalistas se espantaram com a quantidade de corpos queimados desde o primeiro dia. No­­ticiaram que era por revolta ou pro­­testo. Nada mais equivocado! Pela cultura vodu (religião local), um corpo mutilado volta mutilado na próxima vida. Por isso os pa­­rentes queimam os corpos, den­­tro do maior respeito e amor, para que as pessoas possam nascer in­­teiras, pela limpeza do fogo, em uma próxima vida."

Novos tremores

"Eu, medo? Não acredito que al­­guém morra antes de sua hora. Não tenho medo da morte que é apenas uma transição. Nunca tive medo de ficar na minha casa. Dor­­mi aqui a primeira noite com o meu gato abraçado em mim. O ga­­to, sim, ainda tem medo de me per­­der de vista! Nos intervalos das minhas obrigações fui arrumando a casa. Dos cinco empregados, quatro voltaram no terceiro dia. Igor e eu hospedamos três amigos brasileiros que perderam as suas casas. A vida pode e deve voltar ao normal."

Trabalho

"Nesta segunda semana, depois de visitar os orfanatos e descobrir que 'minhas' mais de 300 crianças estão vivas, os meus mais de 80 velhos estão vivos, que todos os bra­­sileiros – padres, freiras e pastores – estão vivos, meus projetos continuam de onde pararam. Mi­­nhas aulas de português recomeçaram na segunda-feira e vamos começar a levantar muros e casas dos orfanatos para esperar maio chegar com suas fortes chuvas e ter a certeza de que todos estarão abrigados. Nada foi interrompido. Tenho visitado todas as instituições de que cuido, localizadas em diferentes cidades que fazem parte da Grande Porto Príncipe. Sem­­pre levando comida e água que a gentileza do povo brasileiro e a pronta reação do governo me permitiram doar."

Respeito

"Em momento algum pensei em deixar o país. O Brasil está aqui há cinco anos e não será agora, quando o Haiti mais precisa de amigos, que vamos abandoná-lo. Todos os funcionários se voluntariaram para ficar. Este povo nos ama co­­mo irmãos e acredita que estamos aqui apenas para me­­lhorar a sua vida. Quer prova maior? A praça em frente ao Centro Cul­­tural Bra­­sil-Haiti está lotada de desabrigados. E o Cen­­tro, agora à vista de to­­dos, pois não temos mais muros, não sofreu ne­­nhuma tentativa de invasão. Eu lhe digo: não foi invadido pelo respeito à bandeira que tremula em seu jardim."

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