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 | Felipe Lima
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Tem um tipo de frase que soa como música: “Meu pai era um homem interessante – ele lia jornais”. Escutei anos atrás, da boca da jornalista Teresa Urban. “Minha vida mudou quando me caiu nas mãos um exemplar da revista Realidade”– disse-me algum veterano, ao citar os textos de Oriana Fallacci. Por aí vai. De João ficamos sabendo que lia Guimarães Rosa. De Carlos, que sabia Drummond de cor. De Pedro e Tatiana, que têm fissura por literatura russa. Mas, quase a rigor, poucos são os que contam suas histórias de leitores com o mesmo apetite com que falam de suas sagas familiares, amores, cachorros, casas, comidas e empregos, quando não dos carros que tiveram – todos devidamente batizados. 

Brasileiros têm talento nato para o cordel. Somos narradores hábeis e não causa surpresa que essa seja a nossa qualidade mais admirada pelos estrangeiros. Gostariam de ser tagarelas como nós. Não há argumento em contrário: sabemos contar uma história como ninguém. Mal não faria se as crônicas pessoais de leitura fizessem parte desse repertório. Até mesmo os cemitérios ganhariam: “Aqui jaz Severino, aplicado leitor de obituários e fã dos quadrinhos sacanas do Zéfiro”.

Alguns, óbvio, têm a sorte de saber que livros fizeram a cabeça dos seus. Saiu publicado nessa coluna, anos atrás, o ocorrido com a artista plástica Teca Sandrini. Ao receber como herança uma caixa de livros de família, descobriu nos exemplares anotações deixadas nas marginálias por seu pai – o admirável repórter José Erichsen Pereira, com quem pouco conviveu. Foi como se tivesse sido apresentada a ele naquele dia. Via de regra, contudo, permanecem raros os que deixam alguma forma de inventário dos livros que leram – e por que leram.

Em se tratando de leitura, preferimos indagar quantos livros foram lidos, e não como e quando os lemos

Uma alternativa para salvaguardar essas biografias de leitores seriam as bibliotecas, ainda que pequenas. Mas, assim que o dono tem a hora boa, acervos são esquartejados e vendidos, na contramão do argumento de que é preciso saber o que o sujeito lia, mesmo que fossem descartáveis faroestes. Parte dessa recusa em considerar que somos feitos do barro dos nossos pais, dos nossos amores, mas também dos livros que cultivamos, se deve a um vício enciclopédico, um tolo exercício de ilustração iluminista. Em se tratando de leitura, preferimos indagar quantos livros foram lidos, e não como e quando os lemos – e que impressão causaram em nós.

A quantificação da leitura outra efeito não tem senão o de agravar nossa miopia cultural. Descobrimos que lemos menos livros per capita que os franceses, os alemães e até mesmo os americanos, o que serviria de prova cabal de nossa inferioridade. Melhor seria perguntar às pessoas que livros elas amaram – e por quê. Quando a questão é essa, a vergonha de ter lido um, dois títulos em 12 meses cede lugar a narrativas alegres, sobre a afetividade vivida com um conto de uma coletânea, com o verso de uma antologia. Não raro, ao se lembrarem de uma experiência bem-sucedida com os livros – e não de estatísticas –, leitores enferrujados ou desertores se lançam à volúpia de um amor adormecido. A contabilidade leva à paralisia. A narrativa provoca o desejo.

Há de se destacar também outro inibidor das histórias pessoais de leitura. Com respeito aos professores que ainda repetem uma velha cantilena, é um equívoco afirmar que se deve ler para escrever bem, para ser uma pessoa melhor, para ter o que conversar. Esses e outros sofismas são frutos da chamada leitura escolarizada. Como ficou no lombo da escola a única e exclusiva responsabilidade formar leitores, o preço é que passamos a ver a leitura como obrigação e utilidade. O busílis é que, quando não precisamos mais ir ao colégio, também não precisamos mais ler. Pior do que isso, só a afirmação de que se deve ler antes de dormir. Santa ignorância: a leitura existe para nos acordar – e provocar fome.

Numa das suas sempre provocativas entrevistas, o escritor português Lobo Antunes declarou que gosta de livros que o levem para quartos escuros e corredores estreitos da grande casa que somos nós. A imagem criada por Lobo se justifica – ele é um psiquiatra. Outra de suas afirmações é a de que livro bom é aquele que, quando acordamos, faz ver a miragem de um dos personagens sentado ao pé da cama, à espera de um dedo de prosa. Bacana.

Em vez de passatempo tolo ou tarefa enfadonha – duas das atribuições mais reducionistas do ato de ler –, melhor apostar na leitura como luxúria. Tal potencialidade foi explorada com frescor num filme já antigo, La lectrice (“A Leitora”), sobre a mulher que acorda a volúpia de homens e mulheres adoentados, ao ler para eles em voz alta, outra prática em processo de extinção. Relações semelhantes aparecem em Minhas tardes com Marguerite e no magnífico O leitor, de Stephen Daldry, para citar alguns dos poucos filmes que fizeram da leitura não uma cena, mas um tema.

Em vez de passatempo tolo ou tarefa enfadonha, melhor apostar na leitura como luxúria

É de se suspeitar que o ímpeto autoritário de levar a leitura na rédea curta seja uma ação preventiva contra o perigo que os livros representam. Se estável, monótono e didático, o texto é bem-vindo. Como proibi-la “é feio”, resta apelar para a infantilização do leitor. Ele não pode ser contrariado, sob risco de cancelar seu cartão fidelidade. O preço pago por esse “cuidado” quase pornográfico é a anemia de uma prática que não se dá pela validação automática daquilo que pensamos. O personagem ao pé da cama, citado por Lobo Antunes, não está ali para nos fazer cafunés, antes, para nos pisar nos calos. 

De resto, quem só leu cruéis livros bem intencionados, derivados dos delírios de Dale Carnegie, trança as pernas na hora de fazer sua biografia de leitor. Olha para trás e se dá conta de que falta à sua sala de livros imaginária um exemplar que o tenha carregado para bem longe dos trilhos. 

A propósito, penso que todo agente de leitura – seja professor, jornalista e quem mais – devia se debruçar sobre Como e por que ler, de Harold Bloom. O homem, que manja de Shakespeare e dos cânones universais e que armou uns tantos barracos literários, mandou um solene saravá para todos os discursos bocejantes sobre a leitura.

O pesquisador não usa de loções refrescantes. Diz que, mesmo com toda a parafernália eletrônica, encontrar um livro que nos sirva é de uma solidão tremenda. Que ler é uma decisão pessoal que independe dos esforços da escola. Grita que a leitura, sim, pode despertar o poeta, mas também o pior escondido em nós. E – importante – que só lê bem quem inventa, improvisa, sapateia e se digladia em cima do texto. Leitor passivo, by Bloom, é conversa fiada. Diz ele que todo mundo anda igual, mas cada um tem um jeito de andar. De modo que é tão inútil quanto tirânico colocar pilhas de livros na cabeça e palmilhas nos pés do leitor – numa flagrante tentativa de que ande direitinho, um marcha-soldado. Lemos de fato quando perdemos as estribeiras, condição para ter uma pequena epifania que seja. Chamam a isso de ironia. Dizem que nossa biografia de leitores começa no dia e na hora em que a experimentamos. É como o amor, o afeto, a memória, o paladar – só que muito mais desconcertante. Creio.

(Texto dedicado a Rubem Alves, Joseph Brodsky, Wittgenstein, João Gilberto Noll e Jesus.)
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