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A nova “Lei das Estatais”, da forma como o texto saiu do Senado para a sanção do presidente interino Michel Temer, ocorrida no dia 30 – mas com alguns vetos –, surge como resposta à farra de desvios em empresas estatais e pretende oferecer uma nova governança para elas. Já era tempo. A atuação empresarial do Estado (que, em si mesmo, já carrega um sem-número de objeções) tem sido historicamente um problema no Brasil. A politização de nomeações, a carência de bons padrões de governança e o uso de modelos irracionais de contratação têm marcado o regime dessas empresas. Era urgente, portanto, ao Estado ou desfazer-se desse acervo ou remodelar o funcionamento das empresas. E a nova lei parece cumprir adequadamente esse papel.

A Constituição Federal, em seu sistema de atribuição de competências legislativas, reserva privativamente à União legislar sobre direito comercial, portanto cabendo à lei federal o estabelecimento do estatuto jurídico das empresas estatais, cuja existência é condicionada a imperativos de segurança nacional e relevante interesse público. Até agora, tal atribuição era a Lei das S/A; no caso das estatais federais, havia regramento específico no Decreto-Lei 200/1967; e, em alguns estados, questionável legislação. Assim, para além da justificativa de atender o sentimento da opinião pública, a transmutação do regramento das empresas estatais para uma lei específica significa clarificar relevantes questões que há décadas estão em aberto ou sujeitas a conflitantes interpretações pelo Poder Judiciário.

A lei inova ao determinar a reprise anual dos objetivos da criação da empresa pública e, especialmente, a explicitação dos compromissos de consecução de objetivos de políticas públicas, sob observância de modernos preceitos de governança, até então somente encontrados em regulação privada, por entidades ligadas a bolsas de valores ou associações autorreguladoras de melhores práticas de governança.

Uma questão crucial é higienizar as estruturas das estatais de interferências político-partidárias

Um dos pontos centrais relaciona-se à despolitização das nomeações. Com a vigência da nova lei, será exigível que os nomeados para a diretoria e para o conselho de administração possuam larga experiência técnica na respectiva área de atuação da empresa, havendo também limites à nomeação de políticos ou dirigentes de órgãos reguladores. Eis aqui uma questão crucial: higienizar essas estruturas, o tanto quanto possível, de interferências político-partidárias. Essa restrição traz pelo menos duas consequências muito desejadas: em primeiro lugar, reduz o risco de aparelhamento partidário das empresas, minorando assim os riscos do parasitismo e da corrupção; em segundo lugar, produz o aperfeiçoamento técnico da gestão, com todos os efeitos positivos que disso decorrem. Além disso, a legislação trouxe a necessidade de atrelar a atuação de diretores a metas de resultado, cuja análise periódica e follow up será feita pelo Conselho de Administração. Outro ganho importante para a eficiência na gestão empresarial.

Já com relação ao sistema de licitações e contratações, não se pode perceber o mesmo avanço. A legislação parece ter ido na direção do enrijecimento das amarras burocráticas. Afora a ampliação dos parâmetros econômicos para a contratação sem licitação e a utilização de padrões incorporados no Regime Diferenciado de Contratação (RDC), a nova disciplina aproxima-se de um regime puramente estatal em vez de prestigiar a eficiência exigida para a atuação empresarial no domínio econômico. O legislador perdeu a oportunidade de produzir uma disciplina focada mais em resultados que no controle dos meios. O equipamento burocrático trazido com a nova disciplina parece excessivamente pesado para permitir a movimentação eficiente dessas estatais. É verdade que o contexto não favorece reformas flexibilizantes dos controles burocráticos inerentes às contratações públicas; veja-se o impressionante saldo da Operação Lava Jato. Mas, bem examinado, o problema da corrupção nas estatais relaciona-se mais à debilidade de sua governança do que à ineficácia dos controles inerentes ao sistema de contratação. Melhorando a governança e aprimorando o controle sobre os resultados, reduz-se necessariamente os riscos de corrupção. E, neste contexto, o fortalecimento do controle burocrático nas contratações contribuirá mais para a ineficiência administrativa do que para frear as práticas de corrupção; em alguns casos, poderá até ser utilizado para legitimá-la.

Aponta-se também, como aparente trade-off no que diz respeito à definição dos administradores, a vedação de indicação de pessoa que tenha participado em trabalho vinculado a organização, estruturação e realização de campanha eleitoral. Tal disposição, construída de forma aberta, é suscetível de interpretações variadas e, em princípio, parece violar o direito de participação política e, portanto, o direito ao exercício da cidadania – o que conduz, em última análise, ao debate sobre o próprio conceito de democracia. Como tal dispositivo foi questionado na revisão da Câmara dos Deputados e reafirmado pelo Senado Federal, parece claro que a opção foi pelo enrijecimento total, talvez como forma de expiação pelos tantos pecados cometidos. Vislumbra-se, nesse aspecto, interessante debate no STF.

Em conclusão, a Lei das Estatais é muito bem-vinda e, espera-se, virá a instalar importante freio nos esquemas instalados nas últimas décadas nas empresas sob controle estatal.

Fabio M. Losso, advogado, é doutor em Direito Civil pela USP e pós-doutor em Políticas Públicas pela Universidade de Chicago. Fernando Vernalha Guimarães, advogado, é doutor em Direito do Estado pela UFPR e professor de Direito convidado de diversas instituições.
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