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A Revolução Russa ainda trepida em muitas almas como acontecimento de anteontem. É verdade, o seu epílogo ocorreu no Natal de 1991, ontem. Vista como processo que durou 70 anos e não apenas como ato de um único dia em outubro de 1917, provoca vívidas cisões passionais por falta de distanciamento histórico. Por isso, as plagas atrasadas presenciam, em 2017, acerbos debates entre quem pretende reencenar o script revolucionário e os que entendem ter sido apenas mais uma miragem. Por isso, análises frias, conectadas aos fatos, tendem a ser repudiadas pelos passionais. Eu aceito o perigo e vou em frente.

Dos muitos aspectos existentes, opto por analisar a confusão entre o fim da Guerra Fria, a débâcle da URSS e a perda de élan do marxismo na parte civilizada do mundo. São três eventos muito próximos no tempo e correlacionados, mas não são a mesma coisa. A míngua da crença no marxismo redundou na eleição de Gorbachov para a chefia da União Soviética; a pobreza econômica da União Soviética a fez perder a capacidade de manter o equilíbrio do terror nuclear que caracterizava a Guerra Fria; as fragilidades do centro de poder ensejaram a ressurreição das nacionalidades aprisionadas pela mão imperial da Rússia, e essas secessionaram o Estado federal soviético.

É possível imaginar situação na qual a URSS ficasse parecida com a China atual e não sumisse (literalmente) do mapa. O império com maior extensão territorial e poder militar da história ruiu sem estrondo, apenas com gemidos, usando a expressão de Theodore Dalrymple. Todos os outros impérios europeus findaram com muito sangue. A França praticou carnificinas na Indochina e Argélia. O Reino Unido espalhou guerras para manter colônias. Portugal reteve Angola e Moçambique sob jugo militar até os anos 70. Bélgica, Holanda, Espanha, Itália, em maior ou menor grau também foram metrópoles de longínquas colônias tropicais, das quais exauriam a seiva.

A URSS fazia blindados, mísseis, aviões fantásticos, mas não gerou a internet, a Microsoft, Google, Apple, IBM

Nessa perspectiva, a União Soviética era apenas a face política e jurídica de mais um império europeu. Alcançava as adjacências da Rússia, sem possessões ultramarinas. Porém, do ponto de vista dos povos bálticos, dados de brinde pelos nazistas a Stalin, dos ucranianos e da franja islâmica a sudeste de Moscou, o czar e o secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética tinham o mesmo efeito prático: subordinação. Extinto o império, os pobres do início perceberam-se pobres no fim. IDH 0,62 do Tajiquistão e 0,80 da Rússia. Aquele, similar ao IDH dos grotões do Brasil; esta, semelhante a São Paulo. Os 70 anos de camaradagem comunista não equalizaram a distribuição da riqueza.

Vamos aos três fatos.

A debilidade intelectual do marxismo-leninismo é tão óbvia que o espanto não ocorre pela perda de adeptos, mas sim por ter conseguido fiéis. Coisa da natureza humana: ideias que mexem com emoções tendem a ser atraentes, ainda que sejam racionalmente estúpidas, como observou o prêmio Nobel de Economia Daniel Kahneman, no livro Rápido e Devagar. Mais hora menos hora essa religião laica, crente na força metassocial do materialismo histórico, iria se tornar démodé.

A vitória norte-americana na Guerra Fria também foi se desenhando a partir da aceleração tecnológica dos anos 60. A URSS fazia blindados, mísseis, aviões fantásticos, mas não gerou a internet, a Microsoft, Google, Apple, IBM etc. A capacidade militar deixou de ser aferida por tonelada e passou a ser medida em bytes, sem que isso fosse combinado com os russos. Aí, eles perderam o jogo.

A estupefação, quase incredulidade, persiste ante a implosão da URSS. Serhi Plokhy, em obra intitulada O Último Império; os últimos dias da União Soviética, narra e analisa os estertores da federação dos “povos amigos do socialismo”, dizendo que o Ocidente não almejava o fim do Estado soviético, entre outros motivos por medo da fragmentação em micropotências nucleares. Todos foram surpreendidos pela evaporação daquilo que parecia tão sólido.

Pena que na intelligentsia brasileira o vapor da sublimação da URSS sirva para embaçar a visão, prolongando a ilusão de quem no hospício é Lenin, não Napoleão.

Friedmann Wendpap é doutorando em Direito Internacional Público pela Universidade de Lisboa.
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