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 | Leticia Akemi/Gazeta do Povo
| Foto: Leticia Akemi/Gazeta do Povo

Dar voz a quem não tem espaço de fala na sociedade e na história é uma das bases da democracia. Há um grupo com uma história incrível que não consegue jogar luz sobre o próprio passado e os resquícios dele nos dias de hoje. O Dia Mundial de Luta Contra a Hanseníase, comemorado neste domingo, é oportunidade de falar sobre essas pessoas.

A hanseníase, originalmente conhecida como lepra, é milenar. Tão antiga quanto o medo e o preconceito que sempre existiram ao seu redor. Apesar de poucas pessoas terem noção do universo da hanseníase, ela está bem presente em nosso país. Dados de 2016 mostram que o Brasil é o segundo país no mundo com o maior número de casos novos de hanseníase. Do total de 214.783 ocorrências reportadas à Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil registrou 25.218, mais de 11% do total mundial. Só perdemos para a Índia. No entanto, se compararmos o número de casos novos com a população total dos países, a ordem se inverte. O Brasil passa na frente, com incidência de 1,2 caso para cada 10 mil habitantes, enquanto na Índia há um caso novo por 10 mil habitantes.

A cura foi descoberta nos anos 1940, mas os doentes permaneceram internados compulsoriamente no Brasil até 1986

Diante dessa liderança nada comemorável, por que quase não se ouve falar em hanseníase por aqui? Recentemente, quando fui lançar meu livro sobre as vítimas da doença, uma pessoa se aproximou com os olhos cheios d’água e disse que precisava conhecer essa história. Também queria levar um exemplar para a mãe. Em voz baixa, confidenciou que um familiar viveu numa colônia de leprosos. Esse assunto era um tabu e causa de muito sofrimento na família até hoje. Estamos falando de 2017.

É difícil combater o que é desconhecido, o que sofre uma alta carga de preconceito e desinformação. A cura da hanseníase foi descoberta nos anos 1940, mas os doentes permaneceram internados compulsoriamente no Brasil até 1986. As colônias, ou leprosários, eram verdadeiras prisões, onde a pessoa entrava para nunca mais sair, onde não mais teria contato com seus familiares. Uma mulher que engravidasse no isolamento tinha o filho arrancado do ventre às pressas, sem ao menos poder tocá-lo, para não transmitir a doença. A criança seguia para um orfanato ou para adoção. Muitas famílias foram desfeitas nesse processo.

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Essa parte da nossa história tão triste e quase esquecida – aliada às deficiências que a doença provoca quando não tratada e ao desconhecimento da cura – enraizou o estigma contra as pessoas atingidas pela hanseníase. Quem já teve a doença, mesmo que há anos, ainda hoje sofre preconceito. A mudança do nome “lepra” para “hanseníase” foi uma tentativa de acabar com esse problema. É preciso deixar no passado o terror do isolamento compulsório junto com tudo o que há de negativo associado à doença. Hanseníase não é bicho de sete cabeças. Tem cura. O tratamento está disponível no Sistema Único de Saúde. Nas primeiras doses do medicamento, a hanseníase deixa de ser transmissível. Os sinais são, geralmente, manchas na pele acompanhadas de diminuição da sensibilidade, que desaparecem com a medicação. No entanto, sem tratamento, gera sequelas que podem até ser incapacitantes.

Devemos falar sobre hanseníase. Os milhares de sobreviventes que trazem relatos comoventes sobre a vida nos leprosários clamam por isso. Eles querem ser ouvidos, respeitados. Querem que as pessoas conheçam essa história para que não cometam os mesmos erros do passado, quando doentes eram enclausurados em vez de receberem tratamento. Os que falam em internação compulsória de dependentes químicos hoje precisam entender o que aconteceu nas colônias de leprosos. Quem tem hanseníase precisa de informação. Todos devem saber da importância do diagnóstico precoce e de seguir o tratamento à risca. As vítimas da hanseníase, do passado e do presente, querem mostrar que a verdadeira praga não é a doença e sim o preconceito.

Manuela Castro, jornalista, apresentadora e repórter, é autora de “A Praga. O Holocausto da Hanseníase. Histórias emocionantes de isolamento, morte e vida nos leprosários do Brasil”.
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