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Felipe Lima

Um júri popular, composto de sete pessoas, declarou o bancário Ricardo José Neis, 53 anos, culpado por 11 tentativas de homicídio triplamente qualificadas e cinco lesões corporais dolosas. As acusações resultam do atropelamento intencional, em 25 de fevereiro de 2011, dos participantes da massa crítica de Porto Alegre, pedalada mensal voltada tanto à promoção da bicicleta como meio de transporte quanto ao questionamento de um planejamento urbano que prioriza o automóvel, em detrimento do transporte coletivo e do ir e vir de pedestres e ciclistas.

Eu estava lá, mas nunca poderia ter imaginado que pedalar numa sexta-feira à noite pudesse despertar o ódio de uma pessoa a esse ponto. Atônita, ouvi o som aterrador de metal se chocando e vi pessoas voando sobre o capô do veículo, que fugiu para longe dos gritos dos feridos. Foi tudo muito rápido.

Na condição de vítima, eu poderia ter me revoltado por Neis poder recorrer em liberdade da pena fixada em 12 anos e 9 meses em regime fechado; e também com a demora do julgamento, que levou quase seis anos para acontecer. Contudo, mais importante que a punição – que considero, sim, exemplar – é a escolha do júri, que foi unânime em considerá-lo culpado e responsável pelo crime. Nos tempos em que vivemos, de exaltação à “lei do mais forte” e do ódio a quaisquer diferenças – o que dá margem a atos de violência extrema como este –, a decisão dos sete jurados diz que sim, é importante ser civilizado. É preciso cumprir regras básicas de convívio, e nossa sociedade depende disso para evoluir.

Também não foi acidente a colisão envolvendo um veículo que “voava” a 170 km/h na noite curitibana

Nos 24 anos em que a massa crítica ocorre mensalmente na cidade norte-americana de São Francisco, onde surgiu, nunca foi registrado um incidente dessa gravidade, ainda que sua realização possa ser legitimamente questionada pela população. Por isso o mundo ficou tão perplexo diante do vídeo com as imagens do ataque.

Porém, mesmo ferida em sua civilidade, Porto Alegre nos deu respostas. O volume de deslocamentos por bicicleta vem crescendo, apesar dos reveses: uma pesquisa da ONG Transporte Ativo mostra que, na capital gaúcha, 52% dos entrevistados passaram a usar a bicicleta nos últimos cinco anos. E a cidade deu ao mundo o Fórum Mundial da Bicicleta, realizado um ano depois para gerar uma agenda positiva a partir da tragédia, reunindo cidadãos e organizações que trocam experiências diversas em torno da ciclomobilidade. Em 2014, a terceira edição do evento ocorreu em Curitiba. E, em 2017, o evento será na Cidade do México.

É preciso frisar: o que aconteceu não foi um acidente. Houve um ataque deliberado a um grupo de pessoas que se deslocava de um ponto a outro da cidade. Se acontecesse hoje, o crime poderia ser investigado até como um atentado parecido com o de Nice, na França, que também envolveu um atropelamento.

Assim como não foi acidente a colisão causada pela soma de bebida e direção, envolvendo um veículo que “voava” a 170 km/h na noite curitibana, e que matou duas pessoas em 2009, pois parte de um desrespeito consciente a regras importantíssimas. A palavra “acidente”, apesar de ser utilizada como mero sinônimo de ocorrência de trânsito, demanda que o fato decorra de fatores acidentais – o que não é o caso dessas duas tragédias, embora uma tenha sido um crime de ódio e a outra, resultado de dolo eventual.

Porto Alegre e Curitiba têm essa proximidade, tanto na geografia quanto em seus traumas urbanos. Que sejam unidas também na punição exemplar a crimes de trânsito.

Lívia Araújo é jornalista e membro da Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta (Mobicidade), de Porto Alegre.
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