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 | Marcos Correa/Presidência da República
| Foto: Marcos Correa/Presidência da República

Estamos assistindo a uma verdadeira cruzada moral na imprensa e nas redes sociais a respeito do vilão da vez: o auxílio-moradia recebido por magistrados que já são proprietários de imóveis e, mesmo assim, têm aceitado receber o benefício no valor mensal de R$ 4,3 mil. Dizem os defensores da moral pública que receber um “benefício” assim é ignorar a realidade econômica do país, o pesado déficit da Previdência brasileira e, ao mesmo tempo, é um abuso. Em outras palavras, trata-se de um julgamento público daqueles que têm o poder e a prerrogativa de julgar o particular e, por vezes, figuras públicas até.

Não é propósito desse artigo mencionar que o auxílio-moradia teve seu pagamento determinado por decisão do STF para toda a magistratura, independentemente de serem os juízes proprietários ou não de outros imóveis, de modo que a questão não envolve antijuridicidade por parte de quem o recebe. Também não é propósito desse artigo comparar juízes com outros servidores públicos para concluir que médicos e professores são também tão importantes dentro do funcionalismo público como aqueles investidos de promover a paz social por meio de suas decisões.

O que mais chama a atenção nesse debate é que os ferrenhos detratores da concessão do tal benefício para a magistratura são justamente aqueles que cobram tanto do Poder Judiciário como do Ministério Público o rigor total contra a corrupção; ou, ainda, são aqueles que entendem que o Judiciário e as autoridades competentes estão pesando a mão nessa dura e permanente “cruzada” anticorrupção.

Então, todos os times em campo passaram a partir para cima do juiz, em verdadeiro comportamento de manada, sem atentar para algumas peculiaridades extremamente importantes.

Todas as carreiras essenciais para o Estado precisam ser bem remuneradas para atrair bons quadros

Gustave Le Bon, já em 1895, em seu clássico Psicologia das Multidões, advertia que “os sentimentos, bons ou maus, manifestados pela multidão apresentam dupla característica de serem muito simples e muito exagerados”. E continua: “Sob esse aspecto, como sob tantos outros, o indivíduo em multidão aproxima-se dos seres primitivos. Insensível às nuances, vê todas as coisas em bloco e não conhece as transições. Na multidão, o exagero de um sentimento é fortalecido pelo fato de que, propagando-se muito rapidamente mediante sugestão e contágio, a aprovação de que se torna objeto aumenta sua força consideravelmente”.

Tudo isso para dizer que, mutatis mutandis, o debate sobre o auxílio-moradia dos juízes corresponde muito, hoje, ao movimento que levou dezenas de milhares de pessoas às ruas no ano de 2013 contra o aumento de 20 centavos no transporte público. Havia, sim, um movimento de cunho econômico, mas o julgamento era moral. Era ali uma manifestação coletiva de insatisfação geral com os destinos da nação, inicialmente eclodida com a indignação contra o aumento de centavos no transporte público.

Mas, além da questão moral e da questão da insatisfação coletiva em relação a diversos e contínuos maltratos à coisa pública, perpetrados por administrações públicas desastrosas em todos os níveis (federal, estadual e municipal), além de um verdadeiro mau exemplo desempenhado por nossos parlamentos também em todos os níveis a colocar em xeque a própria sistemática de representação popular, fato é que o auxílio-moradia merece algumas explicações.

Seria ideal, sim, um subsídio em parcela única para conferir transparência aos vencimentos da magistratura e evitar “penduricalhos” como o auxílio-moradia. Todavia, o governo, ao não promover a devida correção monetária dos subsídios da magistratura, vem dificultando a tramitação dos projetos de lei encaminhados tanto pelo STF como pela PGR, que literalmente se põem a mendigar essas simples correções anuais pela inflação.

Leia também: Os magistrados e o corporativismo (editorial de 21 de janeiro de 2018)

Leia também: Uma definição sobre o auxílio-moradia (editorial de 27 de dezembro de 2017)

O que se verifica é que a questão ostenta, via de regra, contornos políticos, dependendo muito do relacionamento institucional entre o presidente do STF e o governo; é lamentável, sob a perspectiva constitucional de harmonia e independência entre os poderes, esse périplo do Judiciário junto ao Executivo.

Por outro lado, é salutar, sim, uma reflexão profunda sobre a remuneração da magistratura, notadamente no que diz respeito a um adicional por tempo de serviço, viabilizando-se um incentivo ao juiz de carreira que, após 30 anos de serviço público, ganha rigorosamente o mesmo que um juiz recém-ingressado na carreira. As carreiras essenciais para o Estado, todas indistintamente, precisam ser bem remuneradas para atrair bons quadros e, ao mesmo tempo, para funcionar como uma garantia para o cidadão contra a própria corrupção de agentes públicos.

O dinheiro relativo a renúncias fiscais e também as chamadas emendas parlamentares ao orçamento são rubricas que superam, em muito, esses vencimentos de caráter repositório/compensatório da inflação à magistratura.

E, ainda sobre o auxílio-moradia, por mais paradoxal que possa parecer, o governo prefere pagá-lo mesmo nas circunstâncias do debate atual do que fazer esse pagamento via reposição de perdas inflacionárias anteriores, justamente porque essa verba (auxílio-moradia) não reflete nos inativos.

Como se pode verificar, a moral cega das multidões não percebe as nuances, como advertia Gustave Le Bon. Que o auxílio-moradia, assim como os 20 centavos, sirva para promover um debate racional e sincero sobre o assunto da realocação adequada dos recursos públicos, mas não como um linchamento público da nossa magistratura aos sabores do comportamento da manada de plantão.

Marcelo Knopfelmacher, advogado nas áreas Fiscal e Criminal, é conselheiro secional e presidente da Comissão de Relacionamento com o Tribunal Regional Federal da 3.ª Região da OAB/SP.
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