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O problema da instrumentalização do direito pela política e a consequente descaracterização do princípio de imparcialidade parece ser a questão central para entendermos o que se passou nas últimas semanas. Além disso, faz-se premente uma análise que tente compreender, do ponto de vista da nossa formação social, quais as possíveis razões que levaram ao processo de impedimento da presidente. Confrontado ao princípio de imparcialidade e somado à clara constituição política do direito na sua fundamentação, e mesmo na sua prática, encontra-se o uso político do direito, caracterizado nesse momento pelo processo de impedimento da presidente.

Há pelo menos dois indícios indiscutíveis de tal instrumentalização. O primeiro ocorreu durante a defesa do advogado-geral da União perante a comissão da Câmara dos Deputados. Embora date do começo do processo de encaminhamento de impeachment, vale a pena se deter sobre o acontecido tendo em vista sua capacidade de evidenciar a dita instrumentalização. Parece-me claro que toda a defesa foi baseada em argumentos jurídicos: defendeu-se a legalidade das ações da Presidência, não só por estarem fundamentadas na interpretação da lei, mas também em provas documentais da ação legal da presidente. A tentativa foi de demonstrar que ela não violou a lei ou, se a violou, o ato não teria a gravidade apontada pela acusação. Observe-se que não estou afirmando que os argumentos e as provas eram verdadeiros ou falsos, coisa que não tenho competência para avaliar.

Os argumentos, as provas em defesa da presidente simplesmente não foram considerados

Suponhamos, entretanto, que os argumentos da defesa estivessem sendo ouvidos e avaliados, ajuizados por juízes em uma corte, em um tribunal; os argumentos deveriam ser levados em conta e as provas que os sustentam também, sob o risco de, caso contrário, se incorrer em uma violação do direito na forma de seu rito; o processo não estaria dentro da legalidade, não seria um processo jurídico de fato se a defesa não fosse ouvida. Os argumentos, após apreciação, poderiam ser refutados; as provas, desconsideradas por serem insuficientes. Podemos até admitir um quadro de distorção tal em que os fatos seriam desconsiderados por vontade pessoal ou política dos juízes, levando à condenação subsequente do réu; mas dificilmente podemos admitir alteração explicita do rito, como por exemplo a condenação antes de julgamento, o que parece ser o caso na comissão parlamentar que decide o encaminhamento do impeachment. Um ato jurídico pode ser injusto, desconsiderar aspectos éticos, mas, se viola as regras, os ritos que o constitui, isto é, se deixa de considerar de fato os códigos legais, a lei é rasgada, como disse o advogado da União. Quanto mais comum é a quebra da lei pelos seus representantes, menor é a força da justiça; no limite, a instituição do direito simplesmente desaparece. Não é esse o caso dos regimes ditatoriais?

Os argumentos, as provas, o discurso da defesa perante a comissão da Câmara dos Deputados simplesmente não foram considerados como defesa. Os parlamentares que compõem a comissão e juraram respeito à Constituição, em vez de estarem exercendo o papel para o qual foram designados, exibiam cartazes durante o pronunciamento da defesa, ou se dedicavam a consultar a internet e a falar ao telefone. Ou seja, a meu ver, não houve defesa, nem mesmo a sua possibilidade. Mesmo que as provas e os argumentos em favor de uma possível absolvição sejam consistentes do ponto de vista legal, eles não contaram e não contam; não pesam no julgamento dos parlamentares, pois já foi decidida a ilegalidade dos atos da Presidência; a condenação já foi dada antes do julgamento.

Nós nos indignamos quando um veredito é injusto, mas nossa indignação ganha força quando a essa injustiça se soma uma violação clara das leis, sobretudo por parte daqueles responsáveis em aplicá-la. Se os juízes do Supremo, por exemplo, se comportassem durante o julgamento de um processo como fizeram os parlamentares nessas últimas semanas, é claro que tal julgamento não existiria de fato. Juízes desrespeitarem propositadamente os ritos de um julgamento e os direitos do acusado é algo escandaloso e inconcebível em um Estado de Direito. Agora, quando se trata de políticos julgando, parece que o peso dos atos é outro. O desrespeito pelo direito do acusado é visto como ato político e até mesmo visto, por parte dos simpatizantes de uma ou outra posição política, como ato de resistência moral.

O segundo indício de instrumentalização, não em ordem de importância – e, portanto, o mais grave –, concerne à legitimidade da presidência da Câmara na implementação e condução desse processo na figura do deputado Eduardo Cunha. Para muitos daqueles que saíram às ruas sob a bandeira da indignação contra a corrupção, ter Eduardo Cunha, acusado na Lava Jato, presidindo a Câmara e como possível vice-presidente da República não parece ser um problema ético e tampouco um problema grave do ponto de vista da lei. Quando analisada a partir da sua dimensão política, a gravidade jurídica parece desaparecer. É inconcebível, em termos do direito, um cenário no qual um processo jurídico seja conduzido por um acusado de crime, ou réu. Na esfera da política, segundo podemos verificar, essa mesma situação deixa de ser absurda e torna-se não somente factível, mas desejável. Mesmo que Eduardo Cunha seja acusado e citado em esquemas de corrupção semelhantes ou piores àqueles imputados a parlamentares do PT, sua posição política o imuniza dessas acusações. Por mais absurdo que possa parecer, não é o ponto de vista ético ou legal que conta para avaliar suas ações, mas sim, repito, sua posição política. Ou seja, além de instrumentalizar o direito, é a política que define os valores éticos.

Podemos apontar a injustiça e mesmo a violação do pressuposto de inocência, ou seja, o desprezo pelo direito por parte dos parlamentares. Será que, por ser o processo político, pode-se respeitar menos o direito nos seus pressupostos, na sua forma? Talvez seja possível rasgar a Constituição sem se destruir o direito, mas, se um juiz ou uma corte não respeitam a lei sistematicamente, temos o fim da instituição a que pertencem. Se esse ato, porém, é visto como um ato político, me parece, o efeito é o oposto: a integridade da instituição política representada na figura dos parlamentares e pela assembleia parece ser reforçada. É isso? Ter uma comissão que julga atos considerados crimes formada por acusados na Justiça de atos criminosos e não levar em conta a defesa, não considerar nem mesmo a possibilidade da sua consistência, é um ato de legitimação da política? Se a resposta a essa questão for positiva, é certo que isso se repetirá no Senado. Então o direito deixa de existir de fato no âmbito político e passa a ser um mero instrumento retórico.

Como bem disse repetidamente o advogado-geral da União, a tomada do poder não precisa se dar necessariamente pela violência armada. O que está ocorrendo é uma tomada do poder (se é golpe eu não sei), com certeza a tentativa de derrubada de um governo por meio de uma instrumentalização política da lei. O processo de encaminhamento de impedimento não é ilegal, mas a maneira como foi e está sendo conduzido o é, na medida em que não respeita normas fundamentais do direito. Talvez a instrumentalização do direito pela política ocorra nesse país já há muito tempo, talvez desde sempre. Recuso-me a acreditar nisso, porque ainda há, com base nas leis (isto é, dentro da legalidade), espaço para a indignação, a reação, a resistência, a luta contra a injustiça, venha ela de onde vier.

Quanto às razões dessa tentativa de derrubada do governo, para além dos claros interesses em privilégios financeiros e políticos que sempre mobilizam nossos parlamentares, creio que a direita, apoiada por setores os mais conservadores da sociedade, tem em comum com a massa verde e amarela nas ruas não a reação contra a corrupção, ou o medo da crise econômica com suas consequências nefastas, mas o medo arcaico das elites, que se transfere para a classe média de A a Z, de um Estado democrático de fato, ou algo o mais próximo disso. Medo ancestral, arraigado em um passado escravocrata, de uma constante ameaça contra a propriedade e os valores que são a base da família, sendo a família também entendida como uma propriedade sagrada pra muitos. Isso ficou claro na justificativa dos votos dos deputados a favor do encaminhamento do impedimento no dia 17 de abril.

Na história do Brasil, o objeto desse medo se cristalizou (isso pelo menos desde os anos 20 do século passado) em uma iminente revolução comunista; mais recentemente, ele ressurge na forma de um grande complô comunista: esquerdistas, partidos de esquerda, nos últimos decênios estariam tentando instaurar regimes comunistas na América Latina com a finalidade de acabar com a liberdade individual e de imprensa, os valores da religião, da família, da pátria e da propriedade. São os medos arcaicos antigos da coletivização da terra, das fábricas, da destruição da Igreja e da família. No entanto, admitir isso às vezes pode ser caricato, tendo em vista que não há nenhuma base concreta na história recente que sustente tais crenças. Dessa maneira, o medo de uma sociedade um pouco mais igualitária é transferido para o que a simboliza agora: o rápido acesso a bens de consumo e a espaços reservados a determinadas classes sociais por uma parte da população até então reduzida a condições de vida ou muito pobres ou miseráveis. O “horror” de dividir espaços, cujo peso simbólico é inegável, com “o povo”; o “horror” em suportar qualquer índice de igualdade, de dividir riqueza é o que caracteriza nossas elites e talvez seja o núcleo duro de uma boa parte da nossa cultura de base. Não quero dizer que o medo de uma sociedade mais igualitária seja exclusivamente determinante do ódio contra a democracia, mas apenas que ele é, de fato, determinante.

Veja-se os debates em torno da descriminalização do aborto, acerca do casamento homossexual, ou união estável entre homossexuais, cotas na universidade pública, preservação das florestas, as garantias dos direitos trabalhistas para certas profissões, preservação das terras e da integridade física e cultural de vários povos que compõem nosso país. Nada disso parece ser entendido pela maior parte da população como conquista civilizatória, republicana, democrática. Não interessa se tais conquistas sociais já estão há muito consolidadas em países tão admirados por nossas elites como o Canadá, os Estados Unidos ou a maioria dos países europeus. Muitas vezes nem mesmo o debate sobre essas questões é admitido. Pelo contrário, para a maior parte da população, representa a tentativa de destruição dos valores sagrados da família brasileira e da pátria. Boa parte dos parlamentares é produto dessa cultura conservadora que constitui nossa formação. Antes de qualquer coisa, estão convencidos de que, destituindo Dilma e o PT do poder, estão combatendo o avanço do comunismo. E vale qualquer meio para alcançar esse objetivo: a lei pode ser desrespeitada, a corrupção pode ser aceita e mesmo “perdoada” para impedir o suposto avanço da esquerda. O sentimento de pertencimento a determinado clã, com raízes em um mundo de práticas arcaicas, colonialistas, e a cultura do medo que estrutura as bases desse mundo fala mais alto aos ouvidos desses parlamentares e transforma-se no imperativo moral por excelência dos seus atos políticos.

A tese do medo do comunismo do PT como fator de mobilização dos setores conservadores e reacionários da sociedade se justifica ainda mais porque o próprio PT, pelo menos uma parte dele, acredita nisso; acredita que é um partido socialista, e Lula e Dilma são grandes lideres socialistas que estão conduzindo a nação para o futuro socialista. E a extrema-esquerda, ainda pior, se crê ungida pela história: porque autenticamente intelectual-proletária, é a única que pode lutar justificadamente contra o neoliberalismo e contra o PT identificado às praticas neoliberais escamoteadas por pobres benefícios sociais. Uma boa parte da extrema-esquerda faz coro com a direita.

De um lado, uma parte da esquerda petista defende a tese de que, embora tenha e esteja envolvido em práticas ilícitas, de suborno, corrupção, conchavos e acordos etc., típicas dos partidos de direita, o PT realiza e realizou obras e benefícios em prol de uma melhora nas condições de vida da população mais pobre do Brasil, investiu em infraestrutura, e assim por diante. As melhorias fazem parte de um projeto de Estado do PT, o que justificaria tais práticas. Do outro lado, a tese é de que o PT chegou ao poder e se manteve no poder corrompendo e sendo corrompido, administrando seus ganhos em beneficio próprio, enriquecendo de maneira ilícita seus quadros, ao mesmo tempo em que realizava uma política de melhorias para certos setores da sociedade por interesses exclusivamente políticos: o Bolsa Família é o exemplo mais citado, além do crédito para pequenos produtores e da medicina preventiva dos cubanos. Petistas, Lula e família e outros: ex-bancários, ex-porteiros, sindicalistas, que se tornaram parlamentares pelo PT, essa “gentinha”, como já ouvi alguns jornalistas dizerem, teriam tirado proveito do poder para se enriquecer, ou seja, frequentarem os mesmos espaços dos ricos; e também teriam proporcionado a uma parte da população o acesso aos espaços da classe média, teriam proporcionado ascensão social. O perigo é claro: dividir espaços de privilégio com arrivistas.

As duas teses, a da esquerda e a da direita, se bem que diferentes, parecem refletir uma certa coincidência pelo menos em uma constatação geral: a de que houve uma melhora nas condições de vida de uma parte da população brasileira, pelo menos no que tange ao aumento do poder aquisitivo. Particularmente, creio não ter sido apenas essa a melhora, mas acredito também que tanto certos setores da esquerda quanto da direita entendem essas melhorias como um passo expressivo dentro do processo de construção de um projeto socialista. Algo a ser defendido, ou combatido. No meu entender, não é nada disso. Não há projeto no sentido de uma sociedade nos moldes de um regime socialista ou coisa parecida. Muito pelo contrário: pode ser que não haja nem mesmo um projeto qualquer afora o desenvolvimentista típico da nossa história. Se o PT houvesse apenas “roubado” e realizado obras faraônicas, como sempre foi o caso, sem conceder nenhuma melhoria a uma parte pobre da população, melhoria essa entendida como privilégio por muitos, talvez não estivesse sofrendo impeachment.

Walter R. Menon Jr. é professor do Departamento de Filosofia da UFPR.
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