• Carregando...
 | Divulgação/chuckclose.com
| Foto: Divulgação/chuckclose.com

A diretora de cinema nazista Leni Riefenstahl queria desesperadamente que seus filmes fossem analisados individualmente, sem relação consigo mesma ou sua visão política; fazia questão de dizer que eram parte do “cinema verdade” artístico. Na realidade, porém, não passavam de doutrinação, instrumentos de comunicação com objetivos claros e tendenciosos sem espaço para interpretação – classificados, portanto, e justamente, como outra coisa que não arte.

“Colocar Riefenstahl no papel familiar da artista-individualista pode parecer bobagem para qualquer um que tenha visto O Triunfo da Vontade, o filme de propaganda política de maior sucesso já feito até hoje, cujo princípio nega qualquer possibilidade de a diretora ter um conceito visual ou estético independente da doutrina que prega”, escreveu Susan Sontag na New York Review of Books, em 1975. É importante notar que Sontag baseou seu argumento não na personalidade perversa de Riefenstahl, mas sim no fato de seus filmes serem exclusivamente sobre a aceitação dessas ideias. “A força de seu trabalho está exatamente na continuidade das noções políticas e estéticas”, escreveu.

Tudo isso me veio à mente por causa da notícia de que a exposição do trabalho do artista fotorrealista Chuck Close, a ser realizada na Galeria Nacional de Washington, foi cancelada por causa das acusações de assédio sexual contra ele. Mulheres que foram ao seu estúdio para posar entre 2005 e 2013 disseram que o artista as fez se sentirem incomodadas e exploradas. Uma alegou que ele lhe disse que sua vagina “parecia deliciosa”.

Se formos banir completamente os trabalhos de homens maus da história da arte e da música, restarão vazios impossíveis de serem preenchidos

Close, que tem 77 anos, nega as acusações com veemência, mas os curadores insistem que a mostra não pode acontecer. “Dada a atenção recente a suas vidas pessoais, discutimos o adiamento das instalações com cada artista. Este não é o momento apropriado de apresentá-las”, afirmou Anabeth Guthrie, chefe de comunicações do museu em e-mail para o jornal The Washington Post, mencionando também o cancelamento da exposição do fotógrafo Thomas Roma, acusado de má conduta sexual por várias de suas ex-alunas de Columbia.

Outras instituições agiram imediatamente. A Universidade de Seattle, por exemplo, retirou o retrato que tinha de Close em exposição. “Nós tememos uma possível reação de alunas ou funcionárias da faculdade ao ver o retrato e decidimos que seria prudente agir na antecipação e substituí-lo por outra obra”, escreveu o representante da universidade em e-mail publicado pelo semanário de Seattle The Stranger.

É tentador dizer que, se o artista é uma pessoa imoral – ou um assediador sexual, como alegam nesse caso –, sua arte também deve ser venenosa e deve ser descartada. Tal posição é, sem dúvida, reconfortante em sua clareza moral.

Só que a fusão da personalidade com a obra artística implica dizer que o que Close cria não é exatamente arte, mas sim propaganda e, parafraseando Sontag, isso resulta em afirmar que seu trabalho é fundamentado em assédio, o que não é o caso. O que Close faz, de fato, tem mérito artístico, tanto pelo valor estético inovador como, mais importante, sua abertura à interpretação. Reduzir suas criações à biografia pessoal pura é arrancar-lhes o status de arte.

Leia também: Morte à arte? (artigo de Guilherme Bacchin, publicado em 3 de janeiro de 2018)

Leia também: É uma caça às bruxas, sim; eu sou a bruxa e vou caçá-lo (artigo de Lindy West, publicado em 19 de outubro de 2017)

As obras de Close – sem falar das de Pablo Picasso, misógino infame que disse coisas do tipo “Mulher é máquina de sofrimento” e “Há apenas dois tipos de mulher: a que é deusa e a que é capacho”, ou Egon Schiele, que foi preso por sequestro e estupro – não são simples reflexões das ações e crenças do artista. Tratá-las como tal seria um erro categórico.

O trabalho de Close não merece ser apagado da história da arte, nem retirado das coleções permanentes, como algumas instituições menores já fizeram, como a Universidade de Seattle, e outras, maiores, como o Broad de Los Angeles, que estão pensando em fazer o mesmo.

Mesmo que certos artistas sejam desagradáveis, imorais, criminosos até, ainda assim analisar suas obras é aprender algo, é se envolver com questões maiores que vão muito além do próprio autor. O espaço, obviamente, no qual essas questões serão trabalhadas, no qual o público pode discutir as muitas facetas da arte e do artista, se encontra nessas mesmas instituições.

Posto isso, a Galeria Nacional parece ter tomado a decisão correta ao cancelar a exibição de Close, ainda que mantendo suas obras na coleção permanente. Os artistas que ainda estão vivos, mesmo prestigiados como Close, não devem ser poupados das consequências de seus atos. Se, de fato, ele for culpado pela exploração e pelos comentários inaceitáveis que supostamente teria feito, então não deveria se beneficiar do prestígio e da valorização que teria como resultado de uma grande mostra como essa. O mesmo vale para Roma, se as queixas contra ele forem verdadeiras.

Os artistas que ainda estão vivos não devem ser poupados das consequências de seus atos

Porém, se Close não é mais merecedor de uma mostra de prestígio, alguns temem, e com razão, que estejamos patinando em terreno terrivelmente traiçoeiro. Estamos nos encaminhando para um mundo sem exposições de outros artistas imorais, muitas vezes criminosos até, como Paul Gauguin, Picasso ou Schiele, para citar apenas alguns de nossos maiores talentos e personalidades mais brutais?

A resposta é não. Esses homens estão mortos e não têm mais condições de se beneficiar pessoalmente da exibição de suas obras. Elas devem ficar nas coleções permanentes, pois sua arte, tanto quanto será o caso da de Close um dia, é extremamente importante na evolução da história. Não podem simplesmente ser eliminadas.

Se formos banir completamente os trabalhos de homens maus da história da arte e da música, restarão vazios impossíveis de serem preenchidos. Onde estaria Henri Matisse, por exemplo, sem o uso revolucionário que Gauguin fez da cor não diluída? Onde estaria a estrutura fraseada truncada e dramática que responde pela maior parte do que hoje é considerada música “épica” sem Richard Wagner? Não devemos jamais aceitar a ligação do compositor com o nazismo, mas sua contribuição técnica e formal à música não é nem pessoal, nem inerentemente má e, portanto, deve ser reconhecida como verdadeiro benefício à história da música.

Se as alegações se provarem verdadeiras, é bem provável que nunca mais Close consiga fazer uma exibição pública importante. Entretanto, o reconhecimento crucial – ou seja, a questão de seu legado artístico e seu lugar na história da arte – virá necessariamente só depois de sua morte, quando só o que restar for sua obra.

Cody Delistraty é escritor e crítico em Paris.
0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]