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 | Ricardo Marques
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Falar em excesso de poder por parte do Ministério Público não é nenhuma novidade. Desde a vigência da Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais), quando se implementou no sistema de Justiça criminal o instituto da transação penal, efetivando-se a possibilidade de acordo entre acusados de ilícitos e o respectivo órgão, a fim de ver cessada a possível responsabilização criminal futura daqueles, já foi possível constatar sua tendência ao abuso de poder, ao se observar nos anos seguintes milhares de propostas de transação ofertadas sem qualquer fundamento para eventual processamento posterior, ao arrepio da lógica processual penal constitucionalmente adequada (há importantes dados sobre isso).

Mas também é verdade que, se havia excessos e abusos, é porque havia limites. Tais transações, para ficar apenas nesse exemplo, em regra não estipulavam condições e sanções extralegais, nem tampouco consubstanciavam-se em pena sem prévio exame judicial. Hoje, por outro lado, nem sequer são adequados referidos vocábulos, já que não há limite algum. O Ministério Público deliberadamente passou a usurpar os poderes e funções exclusivos do Judiciário e do Legislativo, e como se um quarto poder fosse (superior aos demais, diga-se), legisla e aplica pena, sem qualquer constrangimento.

O Ministério Público deliberadamente passou a usurpar os poderes e funções exclusivos do Judiciário e do Legislativo

Ou há algum exagero nessa afirmação? Leve-se em consideração inúmeros acordos ilegais de delação premiada firmados no âmbito da Operação Lava Jato, com cláusulas de irrecorribilidade de sentenças, vedação de habeas corpus, cumprimento antecipado de penas em regimes estranhos às previsões do Código Penal e da Lei de Execução Penal, ou, quando conveniente, remissão das mesmas, chegando ao extremo de impô-las sem nem sequer precedência de investigação, processo ou sentença, tudo, é claro, sem nenhum amparo legal, para citar alguns exemplos.

E o que dizer, então, da recente Resolução 181, expedida pelo Conselho Nacional do Ministério Público em agosto deste ano, dispondo sobre o procedimento investigatório criminal (PIC), prevendo os chamados acordos de “não persecução penal”, com aplicação imediata de sanções, sem o crivo do Judiciário, confirmando a lógica que já vinha sendo utilizada em seus acordos de delação e ignorando completamente a competência privativa do Legislativo federal para tratar da matéria (contra a qual já há inclusive ação direta de inconstitucionalidade proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros)?

Daí não serem nenhuma surpresa os pedidos do Ministério Público Federal ao Supremo Tribunal Federal de afastamento de parlamentares dos seus respectivos cargos públicos, bem como de suas prisões preventivas, desconsiderando-se, em definitivo, a competência exclusiva do Congresso Nacional para tanto, como se viu nos polêmicos casos de Delcídio do Amaral, Eduardo Cunha, Romero Jucá, José Sarney, Renan Calheiros e, mais recentemente, Aécio Neves. Pra piorar, muitos deles chancelados pela Corte Suprema, levando o ministro Gilmar Mendes a assumir que, nesse trilho, os representantes da última instância de jurisdição do país corriam o risco de acabar no programa dos Trapalhões.

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Não me admira, portanto, que a recém-empossada procuradora-geral da República tenha sugerido ao ministro da Defesa a gravação das conversas dos advogados com seus clientes, desprezando totalmente as prerrogativas da classe e os direitos constitucionalmente assegurados àqueles submetidos a uma investigação criminal. Lamentável, para dizer o mínimo.

O que virá a seguir? Proposta de Emenda Constitucional pelo próprio órgão autônomo, violando-se a competência do Congresso, do presidente da República ou de mais da metade das assembleias legislativas das unidades da Federação para tal, visando a alteração do artigo 2.º da Lei Maior, no sentido de acrescentar-se ao lado dos demais poderes? Se assim o for, que não se esqueça de suprimir do respectivo texto constitucional as expressões “independentes e harmônicos” entre si, para evitar problemas futuros.

Isso que o Ministério Público é, de acordo com a Constituição Federal e com sua Lei Orgânica Nacional, o responsável pela defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Imaginem se não fosse.

Seja como for, a pergunta é: até quando serão tolerados esses arbítrios sintomáticos desse poder supremo e ilimitado em pleno Estado Democrático de Direito? À guisa de encerramento e estímulo à reflexão, que recordemos do célebre poema de Martin Niemöller, traduzido para o português sob o título “E não sobrou ninguém”, sempre pertinente quando diante de qualquer autoritarismo: “Quando os nazistas levaram os comunistas, eu calei-me, porque, afinal, eu não era comunista. Quando eles prenderam os sociais-democratas, eu calei-me, porque, afinal, eu não era social-democrata. Quando eles levaram os sindicalistas, eu não protestei, porque, afinal, eu não era sindicalista. Quando levaram os judeus, eu não protestei, porque, afinal, eu não era judeu. Quando eles me levaram, não havia mais quem protestasse”.

Ruiz Ritter é advogado, mestre e especialista em Ciências Criminais.
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