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| Foto: Borowskki/Wikimedia Commons

Na contramão do que defendi em texto publicado no jornal Folha de S.Paulo, a Câmara dos Deputados aprovou o regime de urgência na tramitação de projeto de lei que amplia a autonomia dos partidos, restringindo os poderes de fiscalização do TSE. A questão merece algumas ponderações.

Há anos o TSE usa (e, para alguns, abusa) o direito de regulamentar as leis eleitorais, aprovando resoluções. A possibilidade consta expressamente do Código Eleitoral, mas jamais poderia se prestar a criar novas obrigações, sanções ou ritos. Em diversas ocasiões esses limites não foram observados, assumindo o TSE a missão de moralizar o cenário político e invadindo competência exclusiva do Congresso Nacional. Assim se viu no caso da infidelidade partidária e na redução do número de vereadores das câmaras municipais, para mencionar duas situações claras.

Em 2016, contudo, o TSE avançou naquilo que considero o nó górdio da questão: os limites da autonomia partidária. Assim, interpretando o Código Eleitoral, compreendeu que as comissões provisórias dos partidos têm prazo certo de validade. Ultrapassado este prazo, elas deixam de existir, e em nenhuma hipótese podem lançar candidatos nas eleições. Além disso, decidiu-se pela aplicação de sanções aos diretórios e comissões provisórias com contas consideradas não prestadas pela Justiça Eleitoral, tornando algo mais real o faz-de-conta que vigorava.

As alterações atingiram o coração do caciquismo – uma breve explanação: chamo de caciquismo o modelo de organização partidária que permite o controle do poder de cima para baixo, invertendo a lógica ideal dos partidos, que seriam organizados a partir de suas bases de filiados. Os diretórios são órgãos eleitos, com mandato definido, cuja destituição somente pode ocorrer com atenção ao devido processo, respeitadas as regras estatutárias e garantido o direito de defesa. Por outro lado, havendo apenas comissão provisória no município, por exemplo, o presidente do diretório estadual pode destituí-la a qualquer momento, sem maiores formalidades. Isso permite o total controle das decisões municipais pelo cacique estadual. Caso ele divirja da política local de alianças, basta trocar os membros da comissão provisória por outro grupo que atenda aos seus comandos.

As alterações feitas pelo TSE atingiram o coração do caciquismo

Para que o esquema siga funcionando, é essencial que as comissões provisórias tenham rigorosamente os mesmos poderes e direitos que os diretórios; o mais importante, o de lançar candidatos nas eleições. Daí o golpe mortal dado pelo TSE ao afirmar que comissão provisória só deve existir com a finalidade de instituir diretório onde esse não existe e, concluída essa missão, dissolve-se naturalmente. Com isso, não se justifica que possa lançar candidatos ou se perpetuar.

O desmonte dessa perna do caciquismo agrava-se com o reconhecimento, também pelo TSE, de que as contas partidárias consideradas não prestadas implicam na impossibilidade de lançamento de candidaturas. Exige-se, com isso, que as comissões provisórias ou diretórios sejam mais que meros órgãos fantoches, prestando suas contas devidamente, sob risco de perderem a razão de sua existência.

A reação da Câmara dos Deputados foi rápida e dura, como sói ocorrer quando a liberdade dos partidos é colocada em debate.

O verdadeiro problema reside, portanto, em saber qual o limite da autonomia conferida pela Constituição Federal, na interpretação cabível nos dias de hoje, aos partidos políticos. Como disse no artigo mencionado, em 1988 vínhamos de décadas de restrição à liberdade partidária, o que tornava compreensível a demanda por um espaço de respiro maior aos partidos políticos. No meu entendimento, tal receio não se justifica do mesmo modo nos dias de hoje. Conquanto não se possa cogitar de uma interferência material da Justiça Eleitoral sobre os partidos – dizendo o que eles podem ou não defender, por exemplo –, nada obsta que deles se exija a adoção de padrões mínimos de auto-organização, compatíveis com as demais normas e princípios constitucionais. Assim, garantir a democracia nas instâncias partidárias e a necessária accountability dos recursos recebidos e dispendidos me parece obrigação plenamente atribuível aos partidos, mantendo incólume o coração da autonomia constitucional que, em meu sentir, deve hoje ser lida na chave de uma autonomia material, não formal.

Naturalmente que a Câmara dos Deputados expressou pensar, maciçamente, de modo oposto. Não apenas quer tolher do TSE o poder de regulamentar a legislação, como busca impedir que sejam aplicadas aos partidos sanções pelo descumprimento das regras. Ora, deixando entrever minha verve positivista, me alinho ao que dizia, no fim do século 19, o jurista alemão Karl Binding: “a lei sem pena é um sino sem badalo”.

Cabe, por fim, lembrar a expressão popular “salvo pelo gongo”, tradução torta do inglês “saved by the bell” ou “salvo pelo sino”. Diz-se que na Inglaterra antiga, com suas cidades apinhadas, havia pouco espaço para os cemitérios. Assim, de tempos em tempos os coveiros abriam os caixões para deles retirar os ossos e transportá-los para os ossuários. Em alguns casos, contudo, encontravam marcas na parte interna dos caixões, demonstrando que os pobres sujeitos haviam sido enterrados com vida. Para evitar esse risco, passou-se a colocar um sino acima do caixão, com uma corda que ia até seu interior. Caso o suposto defunto discordasse dessa condição, bastava tocar para ser salvo.

Sem o badalo, corremos o risco de nossa democracia não conseguir nos alertar que ainda tem algum ar nos pulmões.

Fernando Neisser, mestre e doutorando em Direito Penal, é presidente da Comissão de Direito Político e Eleitoral do Iasp e membro fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep).
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