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 | Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
| Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

A partir do século 16, portugueses, espanhóis, holandeses e outras nações europeias ambularam pelo território daquilo que conhecemos por Brasil e, além de levar daqui aquilo que lhes interessava, deixaram o que a eles era interessante permanecer, destacando-se aqui a difusão da língua e dos valores morais. Transcorridos cinco séculos, ainda vivemos hoje naquilo que nossos “colonizadores” haviam enquadrado o mundo: por mais que tenhamos nos declarado independentes, nosso pensar ainda é dependente de instrumentos utilizados para nos colonizar, quer por sermos obrigados a apenas pensar na língua de nossos patrícios, quer porque os valores que fundaram nossa sociedade permanecerem subrepticiamente em ação.

Sobre a primeira amarra, não há como buscar liberdade, mas impõe-nos que aprendamos a dominar o uso da ferramenta de nosso pensar, em vez de sermos por ela dominados. Ter o controle das palavras faculta-nos percorrer por novos campos de batalha, permitindo descobrir novos conceitos e trilhar caminhos reflexivos impossíveis a um espírito estático num mar de calmaria ignorante. E, se não soubermos manejar essas ferramentas verbais, outros certamente a manejarão – contra nós, diga-se –, continuando a colonização pelos falantes da língua portuguesa.

Permitimos que demônios súcubos da democracia, que professam querer o nosso bem, violem nossas vidas e bens

E, numa analogia imperfeita, se as palavras fossem a carne da nossa linguagem, os valores seriam o espírito dignificante desta res corporea, separando-a dos meros ruídos animais e tornando a língua um sistema vivo e transcendental. Entretanto, como mencionado anteriormente, alguns desses valores estão a agir pela rasteira, esperando nossos frequentes momentos de esquecimento acerca da total prescindibilidade de uma Metrópole a comandar nossas vidas. Notemos o agigantamento da regulação de qualquer natureza de atividade econômica pelo ente estatal e a luta, de todos os espectros, pela regulação de nossos afetos. De vender um doce de goiaba numa banca de esquina a comprar um brinquedo de um indivíduo no exterior, estamos sujeitos a infindos formulários (agora eletrônicos!) para que esta atividade seja regularizada e, o que é mais sintomático, acreditamos que apenas se houver um regulamento estatal prévio nossa atividade pode ser “normal”, numa concepção de que tudo que a lei não permite estaria proibido!

Provavelmente os fiscais do Marquês de Pombal do século 18 ficariam envergonhados se conhecessem os pacotes de austeridade que nossos administradores contemporâneos implementam em prol da eficiência fiscal do Estado. Todavia, a utilidade econômica de nossas vidas não basta à ânsia normalizadora da Metrópole; ela ainda deseja regular nossos afetos, estatuindo o que deve ser família, ou exigindo que tudo seja nossa família, mediante a definição de quais afetos seriam válidos ou necessários (quanta bobagem!). Nessa toada, parece-nos que o único reduto de liberdade, por ora, seriam nossos sonhos, pois ainda podemos desejar sem pedir alvará à casta burocrática.

Foi declarada a liberdade de nossos colonizadores de carne, mas estamos a permitir, docilmente, sermos conquistados por algumas centenas de comuns orbitantes da Capital – tão ignorantes, ilustrados e obtusos quanto a média de nossos compatriotas. Com docilidade e calados, permitimos que demônios súcubos da democracia, que professam querer o nosso bem, violem nossas vidas e bens – nos termos da lei e da Constituição! E, mais que a crítica a tais demônios metropolitanos sugadores das energias do povo (pois estes aparentam ser incorrigíveis), precisamos criticar os espíritos que o moveram a esta posição: nós (sim, uma autocrítica). Esse é o ônus de uma república democrática, em que todos, em menor ou maior grau, suportam a responsabilidade das decisões da Metrópole.

Se não se entende o que é dito em alto vernáculo, é porque optamos pela surdez deliberada. Se a energia de nossos corpos é entregue docilmente aos gestores da Capital, é porque há resignação. A guerra pela (re)tomada do controle de nossa liberdade é contínua e de dificuldade exponencial, tendo suas batalhas ganhas a cada novo conceito linguístico dominado e a cada questionamento a valor social aprendido. Não esperemos a decisão dos homens e mulheres da Capital para decidir o que fazer com nossas economias e afetos!

Fernando Redede Rodrigues é defensor público.
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