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O mundo presenciou em tempo real a morte de Harambe, um gorila de 17 anos nascido e criado no Zoológico de Cincinnati, nos Estados Unidos. A difícil e lastimável decisão de abater o animal se deu em decorrência de uma criança ultrapassar barreiras e cair de uma altura de cerca de 3 metros em um recinto que abrigava três gorilas. A inacreditável, inverossímil e imprevisível cena de uma criança de 4 anos arrastada por um gorila de 181 quilos foi presenciada por um público atônito por cerca de dez minutos. Os vídeos expressivamente compartilhados e analisados por primatólogos atestam: Harambe não mostrava indicativos de que iria atacar, corroborando com outros casos similares.

Os gorilas estão ameaçados de extinção; estimativas indicam que existam cerca de 4 mil indivíduos em vida livre. É um animal lindo, forte, imponente, não deixando dúvidas de que foi uma difícil decisão para a equipe do zoológico, e embora o questionamento mais frequente tenha sido o fato de não terem sido utilizados tranquilizantes, os profissionais atestam que a anestesia demora para fazer efeito, além de o susto aumentar o estresse e poder acarretar uma situação ainda mais trágica.

A ética antropocêntrica coloca o interesse das pessoas em interagir com animais selvagens como mais importante que o bem-estar do animal

Imediatamente após a morte de Harambe, o meio digital e televisivo presenciou uma exorbitante mobilização social atestando o luto pelo primata e divulgando uma petição, que já tem milhares de assinaturas, solicitando que os pais da criança sejam responsabilizados criminalmente pelo fato de não supervisionarem seu filho, que expressou o desejo de entrar no poço.

Por mais incrível e cinematográfica que a situação possa parecer, não é rara. No Paraná tivemos o caso do menino que teve seu braço arrancado por um tigre. Mas será que é possível apontar um culpado apenas? Ou, assim como em qualquer tragédia, existe uma sequência de erros negligenciados? Obviamente os pais têm uma parcela de responsabilidade aditivada pelas novas concepções intrínsecas à sociedade liquida, cada vez mais afastada da natureza e do comunitário. Obviamente o zoológico tem uma parcela de culpa ao expor um animal perigoso sem se precaver com meios mais seguros e menos invasivos já adotados por zoológicos modernos, que dispõem de barreiras de vidro unidirecionais. Obviamente os aspectos culturais têm uma parcela de culpa ao reivindicar centros de entretimento que oportunizem o convívio com a natureza cada vez mais distante do dia a dia. Obviamente a sociedade tem sua parcela de culpa ao não se inserir no contexto como protagonista de uma situação que diz respeito a todos os cidadãos.

O que não deve ocorrer é que a reflexão pare no caso específico, mas que traga à tona questões que há muito tempo demandam uma ação mais efetiva. Os limites éticos na utilização dos animais para entretenimento são uma questão complexa, global e plural que requer a construção de uma ponte promotora de um diálogo, no qual os argumentos de todos os atores sejam ouvidos e uma solução justa seja alcançada.

Os princípios éticos na relação do homem com o animal ainda embasam uma ética utilitarista, na qual aceita-se o uso de animais para finalidades fundamentais para a sobrevivência humana e para as quais não existem alternativas, buscando desenvolver tecnologias que permitam atestar, monitorar e promover as melhores condições possíveis de bem-estar animal, eximindo-o de qualquer procedimento que cause dor ou sofrimento. Olhando por essa ótica, a exposição de animais em zoológicos, pelo menos da forma como a maioria das instituições está estruturada, está mais de acordo com uma ética antropocêntrica, que coloca o interesse das pessoas em presenciar e interagir com animais selvagens como mais importante que o direito à liberdade e ao bem-estar do animal.

Marta Luciane Fischer, bióloga, é docente do Programa de Pós-Graduação em Bioética da Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
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