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A Europa está atordoada pela decisão do Reino Unido de sair da União Europeia. Acompanhei a votação e as reações de perto – primeiro em Lisboa e depois em Londres. Houve um misto de espanto e ressentimento, especialmente dos representantes políticos que atuam em Bruxelas. A reação diante do resultado do referendo era quase consensual: os eleitores que votaram pela saída era formada por gente mais velha, pobre, ignorante, racista, xenófoba; os que votaram pela permanência eram jovens, escolarizados, com renda mais elevada, cosmopolitas, multiculturalistas, pró-imigração.

Estabeleceu-se, então, uma curiosa dicotomia entre aqueles que representariam a “juventude progressista” de Londres e a “velharia reacionária” do interior.

O psicanalista Contardo Calligaris, em sua coluna na Folha de S.Paulo, exibiu de maneira exemplar para onde esse tipo de raciocínio pode enveredar. Ao afirmar que o objeto da votação dizia muito mais respeito aos jovens do que aos mais velhos, porque tratava-se do futuro daqueles que continuarão vivos, Calligaris questionou o fato de ninguém pensar “seriamente na possibilidade de uma idade máxima para votar, sobretudo nos casos em que o voto tem consequências radicais para o futuro da comunidade”. O psicanalista ratificou o equívoco das análises ordinárias. É sempre mais fácil elaborar explicações que reforçam caricaturas e desconsideram o que estava em jogo. Até porque, analisando os números, ao se considerar a maioria constituída por 64% dos eleitores entre 18 e 24 que votaram pela permanência, temos um universo de 36% de jovens que nem se deram ao trabalho de votar – um número expressivo, o que dificulta elocubrações como a de Calligaris e me faz indagar: o psicanalista, seguindo a sua proposta de proibir certos grupos de votar, aceitaria que fosse estabelecido um certo número de propriedades para que o cidadão tivesse o direito de votar nos casos em que o voto tivesse “consequências radicais para o futuro da comunidade”? Ou que o voto fosse vedado a psicanalistas?

Estando em Portugal tive o privilégio de ouvir e conversar sobre o tema com intelectuais e professores de importantes universidades e instituições europeias que apoiaram a permanência e a saída. Dentre aqueles que apoiaram o Brexit, a explicação elaborada estava longe das acusações rasteiras que têm sido lançadas contra eles. O argumento central para a saída estava relacionado ao caráter britânico de não-sujeição a um poder centralizado que regulava várias dimensões da política e da economia e, com isso, atacava a liberdade, a soberania e a autoridade do Reino Unido.

E teria sido o temor pelo aumento do poder do governo da União Europeia que fez com que uma parcela majoritária dos britânicos decidisse pela saída.

Isso leva a crer que esse grupo estivesse preocupado não apenas com o presente mas também com o futuro do Reino Unido. Neste caso, ser mais velho e ter um vínculo mais profundo com as tradições do país teriam sido fundamentais na escolha pela saída. “Cerca de 17,5 milhões de pessoas – o maior número de eleitores que optou por um lado numa votação em toda a nossa história” –, explicou em artigo para o Telegraph o jornalista Charles Moore, “rejeitaram a política europeia desse governo conservador [David Cameron] e votaram para fazer do Reino Unido um lugar livre”. O capital de experiência dessas pessoas seria um fator-chave para compreender a dimensão não econômica do problema e as implicações da permanência – mesmo que não pareça haver um plano para o momento posterior à saída.

Na semana passada em que estive em Londres, a discussão incendiou a opinião pública. E além de David Cameron, primeiro-ministro demissionário que renunciou logo após o resultado, outro desdobramento do Brexit foi a decisão de Boris Johnson de não disputar com outros colegas a liderança dos tories e a sucessão no governo. Sem base forte no partido, Johnson viu sua candidatura ser alvejada de morte pelo secretário de Justiça Michael Gove. Gove já havia dito nos últimos anos, e reforçado no início de junho, que não pretendia ser o sucessor de Cameron. Mas para impedir a ascensão de Johnson, mudou de ideia, disse que vai concorrer porque seu colega de partido não era a pessoa adequada para liderar o Reino Unido neste momento –uma tolice. Traição foi das palavras menos insultuosas proferidas pelos apoiadores de Boris. Seu pai chegou a comparar Gove a Brutus, lembrando a cena clássica da peça Júlio Cesar, de William Shakespeare. Os jornais deitaram e rolaram na sexta-feira passada. Alguns publicaram montagens compartilhadas nas redes sociais que comparavam Gove a Frank Underwood, personagem principal da série House of Cards, ou que o chamavam de Govefather, uma brincadeira com o título em inglês (Godfather) da trilogia O poderoso Chefão. Embora Gove seja um bom quadro do partido Conservador, esse episódio da traição pode ter repercussões bastante sérias para suas pretensões políticas, assim como a desistência de Boris Johnson pode comprometer o seu futuro político .

Em que, afinal, isso afeta o Brasil? Embora nosso país não seja, por enquanto, afetado diretamente pela mudança na União Europeia, há pontos que nos vinculam a essa história: sabemos bem o que é uma decisão democrática ser atacada sob a justificativa de que os eleitores não estão preparados para definir certos temas (o resultado do referendo das armas em 2005, por exemplo); e, claro, entendemos bem o que é ter arremedos de Frank Underwood na política.

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