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Não há saudade, há saudades. Nascemos com elas. A nossa própria língua nasceu da lamentação. Em 1108, o rei Afonso VI disse, após perder um filho na batalha de Uclés: "Ay meu fillo! Ay meu fillo, alegria do meu coraçon e lume dos meus ollos, solaz de mea velhice! Cavaleiros u me lo leixastes? Dade-me meu fillo, Condes!" A dor de um pai que acaba de perder o filho e já começa a sentir saudades: assim estava nascendo o português, ainda na sua feição galega. Depois, o trovadorismo se incumbiria de consolidar a língua, ao mesmo tempo em que exprimia o sentimento da falta amorosa.

Sim, nascemos sentindo saudades. Logo depois do parto, o bebê nota que está separado da mãe e chora. Crianças menores caem nos prantos se a mãe sai do quarto por alguns segundos. Pequenas saudades marcam toda a história da infância, quando os filhos percebem que os pais saíram para trabalhar ou nos primeiros dias de escola. Certa vez, com 6 anos, eu me perdi de minha mãe numa loja de departamentos, em São Paulo. Foram cinco minutos sem ela. Tenho saudades daquela saudade.

Aos poucos, as saudades crescem em força e extensão. Algumas pessoas e lugares ficam mais e mais distantes. Casas, escolas, parques, jardins, igrejas – saudades. Colegas de classe, amiguinhos de brincadeira, namoradas platônicas – saudades. O avô, a tia, o amigo, o irmão, o pai, a mãe – saudades. O caminho de volta fica difícil; e um dia, quando menos esperamos, torna-se impossível. Saudades tendem a ser eternas.

De início, o espírito da saudade faz parte de nós. Mas a grande saudade – aquela que não tem volta – realiza silenciosamente o seu trabalho de conquista, até que nos transformamos no próprio sentimento de ausência. Não sentimos mais saudades; somos a saudade.

Saudades de pessoas que não conheci, de livros que não li, de lugares que não visitei. De uma canção ingênua há muito tempo esquecida, mas que tocou agora no rádio. Da cena boa de um filme ruim. Saudades dos Antônios que nunca encontrei – meu bisavô português, meu avô espanhol – e que carrego na carne do meu nome. Saudades de cura possível e impossível: posso pegar um avião para São Paulo e conversar com meu amigo Zé, mas não posso fazer o mesmo com João Paulo II...

A saudade nos mostra que este mundo não é a nossa pátria. Vivemos no exílio, em navegação. Portanto, se comecei com o lamento do rei galego, termino com o lamento de Camões, rei da nossa língua: "Não é, logo, a saudade / das terras onde nasceu / a carne, mas é do Céu, / daquela santa Cidade, / donde esta alma descendeu".

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