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 | Alexandre MazzoGazeta do Povo
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 O debate sobre os limites da intervenção do Estado no livre-mercado está na ordem do dia em razão de um expressivo número de casos que vêm demandando atenção tanto do poder judiciário quanto do legislativo. Em um deles, que dominou as discussões nas redes sociais, uma decisão da juíza Caroline Santos Lima, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, tratou da cobrança diferenciada nos preços das entradas de bares, casas noturnas e eventos. Segundo a magistrada, esse tipo de política feriria o ordenamento jurídico. “Não pode o empresário-fornecedor usar a mulher como ‘insumo’ para a atividade econômica, servindo como ‘isca’ para atrair clientes do sexo masculino”, disse no despacho. E completou: “afronta a dignidade das mulheres, ainda que de forma sutil, velada”. 

Na mesma linha, o deputado federal Marcelo Squassoni (PRB/SP) apresentou o Projeto de Lei 7.914/2017, com o objetivo de proibir a diferenciação de preços baseada em “sexo, gênero ou identidade”. Se aprovado, as casas noturnas podem ser multadas em até 500 vezes o valor cobrado pelo ingresso mais caro. Também estão previstas a interdição e a cassação da licença de funcionamento. O autor do projeto defende que a prática de diferenciar preços, usual na vida noturna, descumpre os artigos 6º e 51 do Código de Defesa do Consumidor, que preveem igualdade de contratações de bens. 

Paralelamente, outros dois projetos com teor parecido avançam no Senado. No final do mês passado, o senador Lindbergh Faria (PT-RJ) deu parecer favorável a uma proposta de limitar os descontos em livros, uma espécie de política do preço fixo. Livrarias poderiam dar, no máximo, descontos de até 10% nos primeiros 12 meses do lançamento de uma obra. Outra iniciativa, também no Senado, busca alterar a Lei Geral de Telecomunicações para obrigar as operadoras a criarem um “banco de franquias de internet”. Se um cliente não usar todo o seu pacote de dados no mês, teria o direito de acumular o saldo para os meses seguintes. 

Um quinto caso envolveu a proibição judicial – que agora foi afastada por uma legislação específica – de cobrar preços diversos de um mesmo produto em razão do meio de pagamento escolhido (cartão de crédito, de débito ou dinheiro à vista). 

Cada uma das situações acima tem suas peculiaridades, mas permitem neste momento que se formule uma pergunta geral: quando se justifica, no domínio econômico, uma intervenção do Estado, quer através de leis quer através de decisões judiciais? 

A Constituição brasileira afirma, no caput de seu artigo 170, que a ordem econômica está fundada na livre iniciativa. O inciso IV desse mesmo artigo elenca a livre concorrência como um de seus princípios. Mas é também verdade que ao lado dessas coordenadas mencionam-se ainda, entre outras, a existência digna, a defesa do consumidor e a defesa do meio ambiente, princípios estes que entram em jogo nos casos mencionados acima. Sem esquecer ainda do próprio art. 1º, que estabelece como fundamento do nosso Estado a dignidade da pessoa humana. Como balancear todos esses vetores corretamente? 

Em um regime democrático, como é o do Brasil e de sua Constituição, um norte claro, que precisa ser constantemente relembrado e exercitado, é o de que a liberdade pode, sim, ser limitada em razão de outros bens relevantes previstos na própria carta magna, mas – e este é o ponto crucial – sempre, única e exclusivamente, da maneira menos restritiva possível em cada conjunto de casos ou em cada caso concreto. A liberdade é uma das facetas vitais da própria dignidade humana. Por isso, a jurisprudência do STF e a melhor doutrina entendem que, subjacente ao conjunto de direitos e garantias previstos no texto constitucional, vale o princípio da proporcionalidade. O que ele preconiza? Substancialmente que uma restrição às liberdades reconhecidas só pode ser imposta legalmente se o bem que se pretende proteger for merecedor dessa tutela, se não existir outro meio menos restritivo de obter o mesmo fim e se houver razoável proporcionalidade entre o bem que se quer tutelar e o nível de restrição que se quer impor. 

Admitindo-se, para facilitar a argumentação, que, em todos as hipóteses mencionadas no início deste texto, os bens jurídicos em jogo são merecedores de proteção e as medidas que se quer adotar são aptas a proteger esses bens (pontos que poderiam e deveriam também ser questionados!), o que se precisa analisar é se as duas outras condições estão preenchidas. E a resposta é claramente negativa. 

Os casos, entre aqueles mencionados acima, talvez mais peculiares, por não envolverem única e exclusivamente questões econômicas, são os referentes à proibição de diferenciação de preço em razão de sexo, como a decisão da juíza Caroline Santos Lima. Haveria maneiras menos restritivas de se obter resultado similar? Talvez não no curto prazo, embora a escolha singular de cada mulher adulta, que não está em momento algum obrigada ou impelida a aceitar a “ofensa” (uma vez que a balada não é nenhuma necessidade essencial e se pode simplesmente prescindir dela), seja suficiente para afastar o dano. E isso seria suficiente para tornar inaceitável a restrição. De qualquer forma, se se recusasse esse argumento – o da liberdade de uma adulta – teríamos de perguntar: há proporcionalidade entre a proibição e o bem tal qual se apresenta no caso concreto? E a resposta é: de forma alguma. Como a própria juíza sustenta, a afronta à dignidade que se dá ali é “sutil, velada” (o que permitiria, inclusive, a nosso ver, admitir uma interpretação mais benigna para a prática, que afastasse o seu caráter discriminatório). Não parece que, em cotejo com a liberdade que vai ser restringida, haja proporcionalidade. Precisamente por ser sutil e velada, pensariam alguns, precisaria ser coibida. Sim, mas nesse caso, por sua dimensão, precisa ser coibida não por via legal, mas por mecanismos culturais.

A vida se tornaria odiosa se houvesse o policiamento do Estado para eliminar cada uma das pequenas disfunções sociais. Faltaria proporcionalidade e o efeito tenderia a ser desastroso. 

Quando se trata de medidas voltadas à proteção do consumidor, como nos casos do “banco de franquias de internet” e dos meios de pagamento, ou de proteção de um conjunto de atores de mercado, como no caso da restrição de descontos em livros, a falta de proporcionalidade é ainda mais gritante. A confiança na eficiência da livre concorrência não precisa ser absoluta para se saber que, como regra geral, a imposição de preços ou de um determinado modelo de negócios tem um imenso potencial de desarranjar um setor, de coibir a inovação, de prejudicar, paradoxalmente, os próprios consumidores e toda uma sociedade. O benefício que se pretende alcançar precisa, então, ser muito, muito relevante para justificar a intervenção. Isso raramente se dá. 

Quando, portanto, se justifica uma intervenção estatal no domínio econômico? Em casos raros e em casos extremos. Em casos raros, pontuais, de uma maneira limitada e por um tempo exíguo, quando se trata de um setor muito relevante socialmente e que esteja em sério risco de desestruturar-se ou desaparecer (poderia ser o caso, ao que parece, das pequenas editoras). Não parece que um estado democrático não possa vir a socorrê-lo, desde que o faça da maneira menos restritiva possível, embora fazê-lo seja assumir riscos na maior parte das vezes desnecessários. E em casos extremos, como sejam as práticas que atentem gravemente contra a dignidade humana, como discriminações raciais ou étnicas. Ou então, em casos de forte repercussão humanitária, como catástrofes naturais ou guerras, por exemplo. A ação estatal pode e deve conter preços ultrajantes quando um evento natural bloquear o abastecimento de água ou de outros bens vitais em uma região. 

Ao contrário, em “condições normais de temperatura e pressão”, como se diz, isto é, no dia a dia, no ordinário, a autonomia das empresas e do consumidor deve prevalecer. Nesses casos, o crucial é uma adequada legislação e uma adequada fiscalização contra práticas de abuso de poder de mercado, contra práticas anticoncorrenciais. Essa é a maneira que mais incentiva o empreendedorismo, a inovação e a saudável concorrência que beneficia o consumidor. 

Por trás das tentativas acima de restringir a livre iniciativa, está a visão de um Estado provedor e excessivamente regulador. Um poder público que detém o monopólio da escolha de como devem funcionar as relações de troca. Uma visão que desconfia da liberdade e da capacidade dos cidadãos de inovar e achar soluções para suas próprias vidas, inclusive para evitar os pequenos desgostos e dissabores que a vida em sociedade pode trazer, e que acaba prejudicando a livre concorrência e o consumidor. Uma visão que acredita que as soluções devem vir de cima para baixo porque desconfia do próprio homem. A melhor saída, porém, é sempre inverter essa lógica. É confiar nas pessoas e devolver a elas a liberdade de escolha.

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