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 | Foto: Rodolfo Bührer – Ilustração: Benett
| Foto: Foto: Rodolfo Bührer – Ilustração: Benett

Passei uma tarde com Manif Zacharias. E ele passou uma existência inteira em companhia do século 20. Deram-se muito bem, aliás, apesar de o homem ter nascido em plena epidemia de gripe espanhola, visto sua juventude ser tragada pela Segunda Guerra e perdido as estribeiras com o governo militar. Escapou por pouco. A gripe matou 40 milhões, a guerra mais 70 milhões e o golpe, bem, essa é uma conta que não fecha. Mas que nada. Aos 91 anos e alguns espirros, o médico legista confessa que viveu. Em sua mesa de café das cinco, o sonho não acabou, e "ainda tem cuque", como diria o cartunista Solda.

Os paralelepípedos da Rua Saldanha Marinho são testemunhas dos "anos Manif". Era ali que seus pais – os sírios Assad e Zalfa – tocavam uma fábrica de acolchoados e uma "lojinha de turco", dessas que faziam de Curitiba uma franchising de Damasco, onde já se vendia "baratinho, baratinho" lá por 5 mil antes de Cristo. A descrição que faz de seu tempo de menino é um retrato em sépia. Dá para vê-lo – calças curtas – subindo a Saldanha para estudar no Gimnasio Paranaense. Podia ser um personagem de uns tantos Johns – o Reed, o Steinbeck, o Dos Passos. E em certo sentido, é.

Manif tinha "inclinação para os livros", mas, sabe-se lá, entregou-se à medicina com a paixão de um pracinha em campanha na Itália. O afastamento da literatura deve tê-lo deixado numa fossa dos diabos. Pelo menos até botar os pés na cidade catarinense de Criciúma e arrumar um jeito de conciliar bisturis e pendores beletristas: passou a publicar crônicas no jornal local e apostou que seria feliz para sempre.

A inspiração para as historietas vinha do próprio consultório, onde o entra-e-sai deixava como saldo de mexericos de comadres a dilemas shakespearianos. Até que, caros amigos, arrombaram a festa. Era 1964, o ano que dispensa apresentações.

O homenzarrão de jaleco, vozeirão de coreto e cultura de monge medieval causava impressão naqueles rincões, onde nem enchente dava. Foi lá que se pôs a defender os operários das minas de carvão, feito um Émile Zola de Laguna, um Garibaldi de Urussanga. Entrou em cana, claro. "Papai arrumou briga até com um padre polaco", apimenta a filha Dóris, pondo um pouco de graça na tristeza de tê-lo visto ingressar nos porões da ditadura. A irmã Nabia, entre um pão de queijo e uma nega-maluca, não se contém: "Que bonitinho ele. Até de carroça atendia o povo."

Cá entre nós, o desfecho desse filme é digno das mil e uma noites. Manif tinha um irmão delegado – em cujo peito varonil estava impresso "Brasil, ame-o ou deixe-o". Mas perdeu o chão ao flagrar o mano na lista de presos políticos. Aquilo podia ter virado a guerra do Rio Eufrates, mas Miguel salvou o pelo do mano virando seu tutor. A trama dos Zacharias se parece à dos Sigaud – dom Geraldo e Eugênio. Um era bispo TFP, o outro artista marxista – desses de ajoelhar diante da múmia de Lenin. As picuinhas não o impediram de pintar anjos revolucionários na Catedral de Jacarezinho, onde Geraldo ocupava o trono.

Na casa dos Zacharias, a peleja foi resolvida com diplomacia de fazer inveja à Liga Árabe: os dois nunca deram um piu sobre o assunto, resguardando a paz na hora da kafta e do arroz com aletria. Além do mais, de acordo com as pedras da Saldanha, o Zacharias de esquerda tinha mais o que fazer: andava às voltas com seu novo posto de trabalho, no Instituto Médico Legal, o IML.

Para surpresa geral, foi ali, em meio aos exames de vísceras nas pias de alumínio, que a literatura renasceu para Manif. Ele fazia necropsias durante o expediente e necropsias literárias nas horas vagas. Rendeu. Em 2001, publicou um catatau de 991 páginas sobre um dos livros de sua vida – Os sertões, de Euclides da Cunha. Explicou cada tintim de expressões caboclas, como "bamboante" e "noite velha". Uma lenha.

Depois de dissecar Os sertões, o então octogenário escreveu um gigantesco dicionário de composição literária. São 662 páginas repletas de sinomínias, locuções e o escambau, radiografando sem dó termos que vão de "caruncho" a "utopia". O livro – de 2006 – permite virar as palavras do avesso. É seu legado para o século 21. As pedras da Saldanha Marinho já podem descansar em paz.

Em tempo. Em bom árabe, Manif significa "ser privilegiado". Eu sabia.

José Carlos Fernandes é jornalista.

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