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Tem madrugadas em que o curitibano Vicente Mickosz, 81 anos, vai ao Céu. Ele se levanta pé ante pé para não acordar Ariete – companheira de 56 outonos – e sintoniza algum dos seus 12 aparelhos na rádio Milícia da Imaculada, do ABC Paulista. É do além. Lá pelas quatro da manh㠖 quando a vida é só sereno, aragem e breu –, bravos brasileiros colocam as chinelas, telefonam para a emissora, dizem intenções e rezam – no ar, sem bocejar – a segunda parte da Ave-Maria.

Pelo visto, puxar terço antes que o galo cante é mais animado do que dançar zouk na Martinica. Tanto é que o programa atrai marajoaras, capixabas e potiguares num horário em que só monge está acordado. Sem falar nos participantes ilustres. Se ligam na onda uma devota da Itália e um padre da Nova Zelândia, para júbilo dos anjos e das operadoras de telefonia. Quando conta, os olhinhos de mandarim de Vicente não mentem: seu sonho de uma vida era encontrar uma comunidade cristã movida a bons quilowatts de potência. Enfim, achou.

Mickosz tomou gosto pelo rádio ainda nos tempos em que os infantes tomavam Óleo de Fígado de Bacalhau. Piá, produzia em casa o "rádio de galena" – uma traquitana que operava à base de pedra, antena, bobinas e uma mísera agulha de mão. Acredite se quiser – funcionava. Estanislau, o pai, diante dos pendores do miúdo, profetizava: "No futuro, os aparelhos virão acompanhados de um espelho onde as pessoas vão poder se ver."

Como a tevê custou a chegar aos rincões do Abranches e da Barreirinha, onde o clã Mickosz vivia como se tivesse acabado de desembarcar de um vapor de Varsóvia, Vicente arrumou um remédio: decidiu ser locutor, o que lhe garantiria o direito de brincar de "galena" até dizer chega. Contava 21 anos, estava inscrito num concurso para a Rádio Marumby e tinha 99 concorrentes a abater – muitos com gogó nutrido pela coalhada da Schaffer. "Estávamos em 1949. Trabalhar na Marumby equivalia a ser artista", conta Vicente, o segundo colocado.

O primeiro foi Élio Naresi, que não assumiu o posto. Segundo consta, sua desistência fez um bem danado ao Direito – área que abraçou – e à rádio. Fosse diferente, talvez Mickosz tivesse se conformado em ouvir apitos de trem na RFFSA, onde ganhava seu pão, e o mundo seguisse meio sem graça. Afinal, dedicava-se tanto ao microfone que sua mãe, Sofia, acertava o dial todas as manhãs para se certificar de que ele não tinha batido com as dez.

Pudera. A era do rádio parecia um misto de guerra com chanchada. Rolava tamanha rivalidade entre a Clube – ou PRB2 –, Marumby e Guairacá que ai do funcionário de uma emissora que passasse na frente da outra. Dava pau. Em compensação, havia nas empresas aquela galeria de chapas com quem meio mundo queria levar um lero num café da XV. São exemplos os finados Bacila Neto e Tobias de Macedo – o Bilu –, mais Aírton Herrera e Ubiratan Lustosa. Eles eram as cabeças pensantes de uma Curitiba que andava de bonde, tomava dolé e ia no negócio comprar chachicho. Graças a eles, Mickosz ganhou passaporte para debutar num circuito em que os homens saracoteavam de chapéu Panamá e batiam ponto no Cassino do Ahú.

O curioso é que Vicente resistiu feito um mártir aos apelos da boemia. Admite que gostou de ver Emilinha Borba, Vicente Celestino e Orlando Silva pararem a Barão do Rio Branco e quase serem devorados pelas "macacas de auditório". Mas nada que o desviasse do destino de bom moço. Cedo se casou. E mais cedo ainda disse a que veio – seria assessor especial de assuntos divinos.

Arrisca ser um caso único. Sua carreira é toda pontuada pela locução de missas, terços, novenas, uma dezena de congressos eucarísticos – além da transmissão, direto de Roma, da canonização de Marcelino Champagnat. Alçou popularidade tamanha entre os católicos que, fosse o ibope um critério para a hierarquia vaticana, seria o terceiro homem da arquidiocese, abaixo apenas de dom Pedro Fedalto e do padre Reginaldo Manzotti.

Em tempo. Fedalto – de quem é contemporâneo – lhe dava uma mãozinha nas locuções: traduzia no papel o que significavam as falas da missa em latim. São amigos de sangue. Quanto a Manzotti, é fã confesso. Mickosz soube esses dias que, só no domingo de manhã, 64 mil féis escutam o padre pela modesta Rádio Evangelizar – uma das que ajudou a fundar. Quase virou balão de festa. Quase. "Meu estilo? Sou sóbrio", avisa, Vicente, o dono da voz.

Parabéns para ele. E um abraço no Patrão.

José Carlos Fernandes é jornalista.

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