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Há um menino com quem sempre cruzo, bem cedo, na Rua São Francisco. Digo menino e já alerto: é um exagero de minha parte. Ele tem uns 20 anos. Esclareço que não o classifico assim por vontade própria, e sim por respeito a um desejo seu, de imaturidade. Afinal, sempre que me vê, o cara avalia meu rosto e me saúda, sem qualquer ponta de sarcasmo: “Bom dia, meu tio!”

Diz isso tirando da boca um finíssimo baseado, como se erguesse o boné à passagem de um senhorzinho de um século. Gentil, respondo: “Bom dia, menino”. E ele se satisfaz com o vocativo, talvez por farejar em mim um afeto ridículo, porém sincero, de que porventura careça. Ou talvez por não ver mal nenhum nisso de se prolongar a infância, escancarando de vez os fossos geracionais. É um jeito dos mais novos se afastarem da morte, e quem poderá culpá-los?

Ele não se sente um rei, nem um deus, mas quem sabe um anjo

É assim com a gente, oi e tchau. Um sobe, o outro desce a São Francisco, nossa antiga Rua do Fogo. Duvido que o menino conheça o velho nome deste lugar, ou mesmo que se interesse pela história das pedras onde pisa. Gosto de pensar que o desinteresse é uma forma ligeira de felicidade, mas lamento esta ironia – o fogo do presente ignorando o do passado – tanto quanto aprecio os modos livres do menino, que se contenta em fumegar manhã afora, feito uma locomotiva.

Fuma maconha a caminho do trabalho, com um destemor invejável. Cumprimenta a todos, como se a educação o tornasse imune às delações. Inocente, confia nos curitibanos. Segue adiante, parecendo descer uma montanha de responsabilidades acumuladas durante a noite, a mochila nas costas, os tênis de um profundo azul-celeste. É o negativo de um alpinista, busca não o topo das coisas, mas a sua base, o mar ou a planície, 360 graus de horizonte.

Engraçado. Um dia, no meio da tarde, o flagrei no serviço. O endereço não dou, pois não sou dedo-duro. Só conto que o vi diante de duas ou três lojas, sentado no cume de uma escadinha dobrável. Sim, é segurança de calçada. Do alto de sua pequena torre, lança um olhar tranquilo sobre dezenas de balaios ao sol.

Não, não é um menino forte. Nem parece violento. Penso que aceitou o emprego por necessidade, e que o vai tolerando enquanto os ladrões o permitem. Impossível imaginá-lo saltando da escada, perseguindo moleques, recuperando tiaras e calcinhas à base de tapas e pontapés. Não. Acho que apenas se posta lá, no seu trêmulo mirante de alumínio, e relaxa, aproveitando o pouquinho de vista que ainda se pode ter da vida, quando tudo que ela nos dá é uma escada de quatro degraus. Não, ele não se sente um rei, nem um deus, mas quem sabe um anjo, cujo espírito paire, displicente, sobre os comércios humanos.

Quando nos vemos, no entanto, ele ainda não é aquele ser levemente superior e vigilante, a um só tempo homenzinho e totem de monitoramento. É um menino curtindo o seu fumo matinal, marchando pela São Francisco como quem desfila durante os créditos de abertura de seu próprio filme. Ele faz fumaça, nada além de fumaça, e toda fumaça é uma ponte entre o céu e a terra, feita de fogo e de ar. Nisso, talvez, o cronista seja como o menino: nunca um pontífice, mas um fazedor de pontes.

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