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Domingo de sóis em Balneário Camboriú. A luz se reparte em milhões de janelas espelhadas. Na praia, há um misto de tensão e euforia. Uma lancha se incendeia, perto da rebentação, e o céu escurece, tomado pela fumaça. Quase todo mundo está filmando o acidente, são centenas de celulares. Alguém pode estar morrendo ali, eu sei, diante desta audiência seminua, mas a cena só me traz à memória o refrão de um velho fandango: “Fogo sem terra é guerra no mar”.

Deixo a orla para explorar o interior da cidade. É quase um recuo, como se eu pressentisse a presença de canhões, todos virados contra nós, na beira-mar. Paranoico, me escondo entre edifícios que se escoram e sobem, fulgurantes, em busca de Deus, numa pretensão babélica. Aqui não há lixo, não há pichos, não há cartazes. Até as árvores parecem personagens destacáveis. Estão só de passagem, à espera de um ônibus. Não penetram o solo, nem rasgam a calçada. Postas em vasos, à porta dos comércios e dos hotéis, sinalizam uma espécie de nostalgia do enraizamento.

No futuro, ninguém duvidará de que nossa época também conheceu a alegria, a amizade e a beleza

Mas não, crônica não é lugar para teses. Não há espaço nem ânimo para tanto. Aos olhos do desbravador, tudo é belo, e isso deveria bastar. A praia é sempre bonita. O horizonte sempre salva as cidades. Convidado por amigos gentis, vou ao Pontal Norte, passear pelo deque de madeira, meio quilômetro de passarela entre a terra e o mar. À esquerda, a mata e as aves; à direita, as rochas, as ondas, as marolas. Sim, a vida, como um rio de serenidade, deveria acontecer exclusivamente entre essas margens.

Tranquilos, caminhamos sob árvores que não conheço. Vastas, tentaculares, frescas. Uma delas exibe, numa forquilha alta, uma orquídea tão vermelha e deslumbrante que suspeitamos ter sido colocada lá em cima por um artista, um mestre das intervenções. O arranjo magnetiza turistas e nativos, que capturam a flor com seus celulares. Hoje tudo é fotografado, vocês sabem, o que acabará sendo útil, um dia. No futuro, ninguém duvidará de que nossa época também conheceu a alegria, a amizade e a beleza.

De repente, um barulho nos assusta. São dois rapazes muito fortes, bem vestidos para o fim de semana na praia. Creio não terem conseguido resistir a algum impulso primitivo de predação ou desmatamento, pois saíram da trilha para derrubar uma bananeira, na base do empurrão, com os ombros. Agora celebram a própria rudeza e o saque de um cacho de bananas verdes, registrando, com seus celulares, as frutas abatidas.

Na areia, entre as pedras, uma moça grávida, de biquíni, testa a temperatura da espuma com o pé inchado. Usa uma guirlanda de flores brancas. Abraçado a suas costas, feito uma craca, um marido perplexo posa para o álbum da gestação de seu primogênito. E a barriga daquela mulher, frente ao fotógrafo e aos arranha-céus de Balneário, é como a orquídea no centro do matagal: ela reorganiza a paisagem caótica.

Me sinto feliz pelo filho que este casal trará ao mundo, mas lembro que será bom preservar, para o neném, ao menos um destes milhões de sóis sobre a cidade e, quem sabe, alguma vista para os mares. No horizonte, porém, olhem lá: a lancha ainda queima.

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